Nesta terça feria (17), a França aprovou a
sedação terminal, ou seja, sedar o paciente de forma “profunda e contínua” até sua morte. O texto passou pelo Parlamento francês com 436 votos a favor, 34 contra e 83 abstenções e precisará ser considerado pelo Senado. Mas, na França, a decisão da Assembléia Nacional normalmente é definitiva.
A proposta está alinhada com as propostas do presidente François Hollande, que prometeu em seu
programa de campanha de 2012, que “toda pessoa maior de idade, em fase avançada ou terminal de uma doença incurável que provoque sofrimento insuportável físico ou psíquico, que não pode ser amenizado, possa pedir, em condições precisas e estritas, uma assistência médica para terminar sua vida com dignidade”.
A sedação poderá ser usada apenas no caso de doenças ameaçadoras de vida no curto prazo (com prognósticos de pouco de tempo de vida), e será decidida pela equipe médica junto aos familiares do paciente ou requisitada pelo próprio paciente se estiver em plena capacidade de juízo critico.
A proposta de
lei não menciona eutanásia ou suicídio assistido, como a promessa de campanha do presidente deu a entender que indicaria, e não permite a possibilidade de injeções letais. Ela distingue-se da eutanásia por considerar que se está induzindo a pessoa a dormir e não a morrer (como aconteceria se fosse administrado diretamente um remédio letal, prática comum nos países que permitem a eutanásia). Mas o limiar entre as duas coisas é complexo. Durante essa sedação, pode se retirar tratamentos médicos, incluindo alimentação e hidratação, até que o paciente morra. Por isso, pode ser considerado uma “eutanásia passiva”. Este método abre brechas aos defensores da eutanásia para afirmarem que o processo pode causar sofrimento ao paciente (como morrer de fome) e assim, a eutanásia poderia ser considerada um caminho mais “humano”, pois o aliviaria desse possível sofrimento.
Um ponto importante da
proposta de lei é tornar obrigatório o cumprimento do
testamento vital, um documento que explicita manifestações de vontades sobre tratamentos no final da vida, caso o paciente não tenha condições de se expressar. Pode-se indicar o desejo para não ser ressuscitado e não ter aparelhos que sustem a vida artificialmente, como respiração artificial e alimentação, por exemplo.
A questão do uso da tecnologia para manter a vida me lembrou o depoimento da médica, Milena Reis, no post
A tal da boa morte. Para Milena, discute-se muito a possibilidade do parto humanizado, sem intervenções da tecnologia como a cesárea. Da mesma forma, deveríamos discutir a morte humanizada, sem essas intervenções que podem ser impedidas de acontecerem via um testamento vital, caso o paciente já não tenha mais consciência para esse tipo de decisão.
A economista Elca Rubinstein, ex-professora da USP e da UNB e doutorada nos Estados Unidos, quer lutar por seus direitos no que se refere ao morrer. Estimulada a fazer um testamento vital durante um curso nos Estados Unidos (chamado “From aging to Saving” – do envelhecimento à sabedoria), ela diz ter sentido dificuldade em pensar sobre sua finitude, mas ficou impressionada com a possibilidade de definir o que pode ser feito e o que não pode ser feito com seu corpo no fim da vida, caso não se esteja em estado consciente para decidir. Elca elaborou um testamento vital, que mantém guardado em um zip-log dentro do freezer de casa e está entrando com uma ação judicial para fazer com que tenha valor jurídico. Ela acionou a mesma advogada de um caso recente,
Rosana Chiavassa, que ganhou na Justiça o direito de ter seu testamento vital cumprido por lei e assim ter o que ela considera ser uma morte digna e poder deixar o corpo morrer naturalmente, num processo chamado ortotanásia.
Seu objetivo é abrir precedentes para que o testamento vital seja considerado um documento legal no Brasil.
Elca afirma que “o testamento vital é uma porta pra você começar a ter uma conversa com você mesmo, com sua família, filhos, amigos, médicos e advogado”.
“Depois que o fiz, me senti de bem com a morte, porque o medo de perder a dignidade ao morrer, passou. Se houver uma passagem, eu quero entrar nessa passagem sem ter que ficar até o final, segurada por uma tecnologia médica que nada tem a ver com dignidade”, Elca diz.
Em 42 estados dos Estados Unidos, um documento chamado
“Five Wishes”tem valor legal e funciona como um testamento vital. Mas ao invés de ser um documento em branco para se colocar manifestações de vontades, ele indica perguntas que devem ser respondidas, facilitando a reflexão e a tomada de decisão. Aborda questões pessoais, emocionais, espirituais, além das médicas. Nele, pode-se indicar a pessoa que tomará as decisões por você, caso não o possa, como gostaria de ser tratado e o que se deseja que os entes queridos saibam.
Elca menciona quatro razões para se fazer um testamento vital.
1- Físicas
“Se eu estiver morrendo, quero morrer em casa, com as pessoas e coisas que gosto, sem milhões de tubos, nem práticas e tratamentos que prolonguem o sofrimento quando o corpo estiver pronto para partir”.
2- Filosóficas
“Muita gente diz que não vale a pena se preocupar com os momentos finais da vida, porque tudo acaba ali. Eu não concordo. Acho que a morte é uma passagem e por isso é importante fazê-la de bem com tudo o que fui e com o que posso vir a ser”.
3- Financeiras
“Um tratamento para prolongar o final pode ter custos altíssimos e dilapidar o pequeno patrimônio que eu juntei para deixar aos meus filhos. É preciso olhar o custo-benefício por todos os ângulos”.
4- Informação
“Hoje existe um instrumento, que é o testamento vital, que me permite expressar antecipadamente o que quero e o que não quero”.
Deixo aqui uma curta animação indicada por Elca, “A Dama e a Morte” que representa para ela a possibilidade de morrer quando ela achar que está pronta para isso, sem ser submetida a vários tratamentos e tecnologias que prolonguem sua vida sem sua vontade.
Tudo isso me remete à uma pergunta veterana aqui do blog: o que é uma boa morte? Não conheço alguém que voltou de lá para contar, mas continuamos aqui refletindo e acredito que seja benéfico colocar-se em pauta, no Brasil, a discussão sobre “morte digna” e assim tornar mais claro o significado e os desdobramentos desse emaranhado de conceitos como ortotanásia, eutanásia, distanásia, suicídio assistido, testamento vital, cuidados paliativos, enfim, essas referências que muitas vezes não são claras nem para os médicos que tratam do paciente terminal.
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Atualização em 20.03 – A sedação paliativa
Recebi um e-mail do médico geriatra e paliativista Dr. André Filipe Junqueira dos Santos, indicando algumas considerações importantes sobre este tópico.
No Brasil, ocorre a prática da “sedação paliativa”, que não é regulamentada por lei como ocorreu recentemente na França. Ela é ministrada a pacientes com uma doença incurável, na fase terminal e com sintomas que não podem mais ser controlados – que não respondem a nenhum outro tratamento, por exemplo, uma falta de ar decorrente de um câncer de pulmão. A sedação não é um coma induzido pois nela há um nível de consciência, ao passo que no coma não.
Dr. Junqueira diz preferir o termo sedação paliativa ao termo sedação terminal, pois este último daria a entender que o procedimento vai levar à morte e esse não é o intuito da sedação. Ele diz já ter tido casos em que a sedação foi retirada após a melhora do paciente.
Dr. Junqueira diz já existir trabalhos científicos mostrando que a sedação não antecipa a morte, diferindo-se da eutanásia, como
esse estudo do
Annals of Oncology. A principal diferença é que o objetivo da eutanásia é aliviar o sofrimento antecipando a morte e no caso da sedação, o objetivo é atenuar os sintomas da doença, pelo rebaixamento do nível de consciência. Além disso, a eutanásia não é reversível, a sedação sim.
Na eutanásia, injeta-se uma substância chamada cloreto de potássio, provocando-se uma parada cardíaca. Na sedação, é usado um remédio para baixar o nível de consciência, chamado Midazolam, comercialmente conhecido como Dormonid (medicação utilizada por exemplo, para sedação durante uma endoscopia) .
Sobre a retirada da alimentação e da hidratação, Dr. Junqueira diz que são procedimentos opcionais e polêmicos. Na sedação, não há a sensação de fome ou sede, pois são atividades reguladas pelo hipotálamo, que deixa de funcionar. Mas Dr. Junqueira considera ser uma questão, do ponto de vista fisiológico, indiferente, porque se o paciente tem horas ou dias de vida, não será a alimentação ou a hidratação que o fará viver mais ou menos. Ele vai morrer em decorrência de complicações da própria doença. Porém, existem outros aspectos além da fisiologia envolvidos na alimentação e na hidratação, como religiosos, psicológicos e emocionais, sendo que esta decisão deve ser feita em conjunto com a equipe médica junto e os familiares.
Ressalto que a eutanásia é considerada crime no Brasil, assim como o suicídio assistido. Assisti, recentemente, o documentário “
Choosing to die”(“Escolhendo Morrer”) organizado pelo escritor Terry Pratchett (1948 – 2005) sobre o suicídio assistido. Segue o link abaixo (em inglês – não encontrei um link com legendas em português) para quem tiver interesse em ver como funciona esse procedimento na Suíça, um dos países que em que ele é permitido.
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