Decisão inédita no RS favoreceu casal homossexual que pediu
ajuda a amigo para gerar um filho
POR FLÁVIO ILHA E RENATO
GRANDELLE
13/09/2014 6:00
PORTO ALEGRE E RIO - O juiz Rafael Cunha, da 4ª Vara Cível do
Fórum de Santa Maria (RS), autorizou anteontem o registro de nascimento de uma
menina com duas mães, um pai e seis avós. A decisão, inédita na Justiça
brasileira, foi cumprida ontem no 1º Cartório de Registro Civil da cidade, que precisou
adaptar o sistema de registro para que o documento pudesse contar com nove
nomes. A certidão será entregue às mães e ao pai na semana que vem.
Casadas legalmente há dois meses, depois de viverem em união
estável por quatro anos, Fernanda Batagli Kropenski, de 26 anos, e Mariani
Guedes Santiago, de 27, pediram ajuda ao amigo Luis Guilherme Barbosa para
gerarem um filho. Como condição para aceitar o pedido, Barbosa quis constar
como pai na certidão de nascimento de Maria Antônia, que nasceu de parto normal
no último dia 27 de agosto. A fecundação se deu pelo processo clássico.
Fernanda foi quem deu à luz, mas ambas constam como mães na certidão.
O juiz considerou a decisão “simbólica” e disse
que privilegiou a “proteção e o afeto” da criança no que chamou de “ninho
multicomposto”.
— É importante salientar que essa menina terá, desde o seu
nascimento, o registro de uma família multiparental diferente do que é comum.
Tudo o que é novo causa um certo espanto, mas a decisão é absolutamente natural
e foi tomada sem controvérsias — afirmou.
A sentença foi dada no mesmo dia em que um Centro de Tradições
Gaúchas (CTG) acabou incendiado em Santana do Livramento (RS) como represália à
realização de um casamento coletivo com a presença de um casal gay. No caso da
certidão multiparental, o pedido foi feito em 26 de agosto, um dia antes do
nascimento da menina, e recebeu parecer favorável do Ministério Público em
tempo recorde. A decisão também foi rápida, como forma de garantir existência
civil à criança.
Cunha disse que o atentado ao CTG não influenciou sua decisão, mas salientou que a sentença é um reforço à ideia de respeito às diferentes concepções de família e de casamento, que são garantidas pela Constituição.
— Isso é importantíssimo para reforçar o respeito às diferenças,
especialmente neste momento de intolerâncias de todas as espécies — defendeu.
As duas mães e o pai, assustados com a repercussão do caso, não
quiseram falar com a imprensa. A advogada da família, Bernadete Schleder dos
Santos, disse que os três estão “muito felizes” com a decisão, apesar das
dificuldades técnicas para registrar Maria Antônia.
— O cartório necessitou adaptar seu sistema de registro junto ao
Tribunal de Justiça para comportar tantos nomes numa certidão, mas os problemas
terminaram aí. A sensação é de contentamento — disse.
Bernadete foi ao cartório na manhã de ontem com a sentença
judicial e requereu o registro da criança, que deve ficar pronto até a próxima
segunda-feira. Entre o pedido à Justiça e a sentença, passaram-se pouco mais de
duas semanas. Segundo a advogada, a decisão favorável foi facilitada porque não
há litígio entre as três partes.
— É um exemplo de entendimento e tolerância — comparou.
RESOLUÇÃO FAVORECEU REGISTROS
Desde maio de 2013, uma resolução do Conselho Federal de Medicina
admite a utilização de técnicas de fecundação “in vitro” por casais
homoafetivos, o que tem aumentado a existência de crianças registradas em nome
de dois pais ou duas mães.
Mas a presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-RS,
Maria Berenice Dias, disse que o registro com três responsáveis legais é
inédito na jurisprudência brasileira. A jurista comemorou a decisão e disse que
a sentença expressa “a complexidade da vida”.
— As famílias tradicionais, representadas por um pai e uma mãe,
estão deixando de ser o retrato usual da nossa sociedade para dar lugar a
composições menos convencionais. Nesse sentido, a sentença é histórica porque o
amor não tem que ter limites. Quanto mais pessoas tiverem vínculos afetivos,
melhor para uma criança — disse Maria Berenice.
‘DISCURSO MORALISTA’ CONTRA DECISÃO
Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFam), Rodrigo da Cunha Pereira avalia que novas estruturas parentais estão
surgindo e que, por isso mesmo, “devemos estar de acordo com essa realidade”.
— Há um discurso moralista de que este seria o fim da família —
comentou Pereira. — Foi o mesmo que disseram em 1977, quando o divórcio foi
introduzido no país. A família não é uma estrutura natural, e sim cultural. Por
isso, vários arranjos são possíveis. Sei que este caso abre um debate ético,
mas não há por que ter medo disso.
---------------------------------------------------------------------------------------
CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
Nenhum comentário:
Postar um comentário