Doação compartilhada de óvulos
Eudes Quintino de Oliveira Júnior
A doação de óvulos é
um assunto interessante e que vem ganhando corpo na medida em que a
medicina, pelo seu caráter eminentemente pesquisador, atinge novas
técnicas na área da reprodução assistida. A legislação, por sua vez,
pela sua própria natureza regulamentar, não acompanha pari passu a
evolução e só posteriormente se encarrega de definir as regras
permissivas. Em razão deste hiato proposital e necessário, um
procedimento médico, eventualmente regrado por uma Resolução do Conselho
Federal de Medicina, fica a descoberto, sem o suporte da legislação
ordinária, provocando um desconforto tanto para o médico como para o
paciente.
O corpo humano, como é
sabido, não é objeto para ser lançado no comércio e se submeter à
especulação. É um bem indisponível, e dele ninguém poderá dispor, com
exceção de algumas hipóteses. O latifúndio que o homem carrega consigo
cada vez mais está sendo explorado em favor do próprio homem.
A lei 9.434/97
possibilita a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo
humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e
terapia. Referida lei, no entanto, não coloca restrições e não abrange o
sangue, o esperma e os óvulos. A única possibilidade de doação é com
objetivo científico ou altruístico. Para tanto, na reprodução humana
assistida, utiliza-se a técnica da fertilização in vitro,
consistente na manipulação dos materiais procriativos do homem e da
mulher para a formação do embrião. Após, cuida-se da transferência para o
útero da mulher que forneceu ou recebeu os óvulos ou de outra que
exercerá a função de maternidade substitutiva, conhecida como “barriga
de aluguel”.
Ocorre que na prática
vem sendo constatado que muitas mulheres doam óvulos em troca de
tratamento, como check-ups ginecológicos, métodos contraceptivos, exames
e até mesmo dinheiro. Tal liberalidade vem representada pela doação
compartilhada em que uma mulher, após se submeter a uma série de exames,
inclusive com injeções de hormônio para estimular o ovário, doa parte
de seus óvulos à outra com dificuldades para alcançar a gravidez. Pela
nossa legislação, o fato não é considerado crime porque não descrito na
lei penal, mas não é ético e infringe as normas básicas da frágil
legislação que rege a matéria.
Não se pode banalizar a
ovodoação. Muitas mulheres se sujeitam a tratamentos infindáveis para
conseguir a gravidez e não atingem o resultado desejado. Às vezes até o
casamento entra em rota de colisão em razão do problema. Não só os
casais desejam a reprodução, mas também mulheres solteiras que buscam a
chamada “produção independente”, sem falar ainda dos casais
heterossexuais que já frequentam com certa assiduidade as clínicas de
reprodução. Assim como o sangue, o leite materno, a doação de óvulos
deve ser regida pela espontaneidade e altruísmo, levando-se em
consideração a grandeza do ato.
A própria solidariedade
que une o ser humano recomenda a ovodoação e qualquer pessoa de bom
senso não irá recriminar tal conduta. O que causa repúdio do ponto de
vista bioético e jurídico é justamente o caráter mercantil que pode
contaminar a doação. Um filho não pode ser resultado de negociação entre
as mulheres que participaram da ovodoação compartilhada. Já que a
gravidez não está sendo atingida pelos meios naturais, devem ser
apontadas regras claras para dirimir a questão. Também se tem notícia
que muitos casais com suporte financeiro suficiente frequentam clínicas
no exterior, onde podem adquirir os gametas para a inseminação
pretendida. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) está
sendo questionada a respeito da liberação da importação de óvulos e
espermatozoides.
O Código
Civil, que entrou em vigência em 2002, trouxe considerável
colaboração com a nova postura em razão dos avanços da engenharia
genética. Desprezou a regra tradicional de que a maternidade é sempre
certa (maternitas certa est) e resolveu, desta forma, o impasse
para saber se a mãe vem a ser a que doou os óvulos ou a que os recebeu e
gerou o filho.
Mas, em contrapartida,
sanado tal impasse, outro surge e levanta interessante dúvida a respeito
da prole de ambas. Como não há qualquer registro ou banco de dados que
compreenda a ovodoação, pode até ser que os filhos, sem a catalogação
genética necessária, venham a se casar futuramente e trazer outros
complicadores biológicos e legais. Nos Estados Unidos, onde há
legislação específica a respeito da matéria, com a permissão inclusive
de venda de óvulos, faz-se um documento entre os pais receptores e a
doadora do óvulo, excluindo esta última de qualquer direito sobre a
criança.
Por outro lado, em
razão da proibição da comercialização, a consequência inevitável é a
escassez de óvulos destinados à doação. A mulher passa por um
procedimento médico que se inicia com a utilização de hormônios e em
seguida pela técnica invasiva para a punção dos óvulos. Como já há casos
registrados pode ocorrer a hiperestimulação ovariana e até mesmo a
perfuração de órgãos durante o ato cirúrgico. Tais condutas provocam
desestímulos às potenciais doadoras que devem ser movidas por um
altruísmo sem medida.
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* Eudes Quintino de
Oliveira Júnior é promotor e Justiça aposentado e reitor da Unorp
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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