Infância
17.10.2016 14h30
Mica, 2, e Mariana Vieira Carvalho,
que optou por um nome que não revelasse o gênero da criança e assim a
preservasse de estereótiposimagem:
Marcos Peron/UOL
Natália Eiras
Do UOL, em São Paulo
Mica tem dois anos e
apenas os cuidadores, como os seus pais biológicos preferem ser tratados, e a
criança sabem o seu sexo. Um dia, Mica sai com um vestido rosa cheio de babados
e, no seguinte, com um bermudão azul. Fora o visual, nem mesmo seu nome entrega
seu gênero de nascimento, porque a educadora Mariana Vieira Carvalho, 29,
escolheu um nome que soasse neutro.
Vivendo em Campinas,
no interior de São Paulo (SP), Mariana não se identifica nem como mulher nem
como homem –por isso, não se importa de ser tratada no feminino ou no
masculino. Por isso, quando descobriu que estava grávida, decidiu optar por uma
criação de gênero neutro. O fator pessoal, no entanto, não deixou a situação
mais fácil.
"A gente ainda
fica muito preso nessa binariedade. Tanto que, quando vi o sexo na
ultrassonografia, comecei a pensar em nomes para a criança vinculado a um
gênero", afirma Mariana.
Mica com os cuidadores, Mariana e
Raul; a criança usa roupas diversas para não criar estereótipo de gêneroimagem: Marcos Peron/UOL
Mariana, ao lado de Raul Almeida Carvalho, 31, que atua como
profissional de psicologia, decidiu que a neutralidade tinha de vir desde
o nome de registro. "Foi difícil porque não há muitas opções
contemporâneas. E a gente teve o cuidado de não colocar nenhum nome que pudesse
causar um constrangimento futuro."
De acordo com o
terapeuta sexual Breno Rosostolato, professor da Faculdade Santa Marcelina, em
São Paulo, nomear uma criança com um termo que não entregue o sexo de
nascimento ajuda a criar uma pessoa mais livre dos estereótipos de gênero, mas
não é o bastante.
"A criança
precisa ter condições de se representar do jeito que ela quiser e
principalmente ter essa representação respeitada", fala Rosostolato.
O especialista diz
que, aos cinco anos, uma pessoa já tem compreensão de si para se dizer homem ou
mulher. "E se a criança cresce em um ambiente que respeita essa expressão
dela por um gênero, isso dá forças para enfrentar preconceitos. A criança eventualmente
vai sofrer, mas com o apoio dos pais tudo se torna mais fácil."
Para criar esse
ambiente mais acolhedor, não é necessário nem mesmo entrar na discussão sobre
gênero. Basta ensinar que não importa se é menino ou menina ninguém é melhor do
que ninguém.
"É ensinar a se
respeitar", fala Breno Rosostolato. Outro ponto é mostrar que um rapaz,
por exemplo, pode, sim, entrar em contato com seu lado mais emocional, pode
fazer atividades ditas femininas. "Eu mesmo nunca gostei de dirigir e isso
nunca fez eu me sentir menos homem."
Bernardo, 3, é o filho
mais velho da gerente administrativa Sthela Baltazar Bartholomeu, 28, e do
assistente de relações internacionais Douglas Bartholomeu da Silva, 31. Ele
sempre se identificou como menino e é, nas palavras da mãe, um
"moleque".
No entanto, Bernardo também curte pintar as unhas das mãos. "Ele diz que está colocando cor, brilho. Bernardo me mostra os dedos falando: ‘Olha, mãe, parece um arco-íris’", fala Sthela.
No entanto, Bernardo também curte pintar as unhas das mãos. "Ele diz que está colocando cor, brilho. Bernardo me mostra os dedos falando: ‘Olha, mãe, parece um arco-íris’", fala Sthela.
Os pais de Bernardo
nunca viram nenhum problema no fato de o filho gostar de passar esmalte ou
brincar de boneca com a irmã mais nova, Cecília, de um ano e meio.
Douglas e Sthela deixam Bernardo, 3,
pintar as unhas, mas familiares acham estranhoimagem: Edson Lopes Jr./UOL
"Mas a minha família estranhou
muito. Ficavam perguntando se ele não ia ficar confuso, se não ia saber que era
um menino. Sendo que ele nunca demonstrou se identificar com outro gênero que
não o designado em seu nascimento", diz a gerente.
Por mais que o nome de
Bernardo não seja neutro, ele já está um pouco mais distante dos estereótipos
de gênero. "Mas todo dia, quando ele vai para a escola, preciso conversar
com ele de novo sobre como não existe
brinquedo de menino ou de menina. Existe brinquedo de criança",
afirma Sthela.
Para Marcelo Moreira
Neumann, professor de psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em
São Paulo, e um dos autores da pesquisa "Bullying Homofóbico e Desempenho
Escolar", a neutralidade no registro facilitaria de maneira prática a vida
de uma pessoa que não se identificasse com o gênero de nascimento.
"O indivíduo não
teria de passar por um processo jurídico caso fosse transgênero nem enfrentaria
situações vexatórias relacionadas ao nome", fala o especialista.
Cabe, no entanto, bom
senso na hora de escolher uma opção que não exponha a criança a situações
desconfortáveis socialmente. "É preciso ter muito cuidado com o nome porque
ele é o nosso cartão de visita. Está muito ligado à nossa identidade. Um ataque
ao nome nos atinge diretamente", diz Neumann.
Aspecto legal
Caso o nome escolhido
seja considerado estranho, o Cartório de Registro Civil pode se negar a fazer o
registro. "Existe uma regra nos casos de termos que podem expor uma pessoa
ao ridículo, como é o caso de Hitler, satanás, lúcifer", explica Monete
Hipólito Serra, diretora da Arpen -SP (Associação dos Registradores de Pessoas
Naturais do Estado de São Paulo).
De acordo com Monete,
são poucos os nomes que são barrados, e os pais podem recorrer do veto.
Apesar de Breno
Rosostolato não achar que seja o bastante, a preocupação em nomear uma criança
com um termo de gênero neutro é uma decisão importante.
"O
constrangimento que um transexual passa quando entrega os documentos de
registro com um nome diferente do gênero pelo qual ele se apresenta é o mesmo
que sofre uma pessoa que odeia o próprio nome."
--------------------------------------------------------------------------
CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
Nenhum comentário:
Postar um comentário