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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Cuidados paliativos: entrevista com Ana Claudia Quintana Arantes

Cuidados paliativos: entrevista com Ana Claudia Quintana Arantes

POR CAMILA
15/09/15  07:54
A médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes é formada em cuidados paliativos pelo Instituto Palio (na Argentina) e pela Universidade Oxfort. Em 2007, ela foi uma das fundadoras da Casa do Cuidar, instituição voltada para a prática e o ensino em cuidados paliativos. Ana Claudia tem um consultório no Hospital Albert Einstein e coordena o hospice do Hospital das Clínicas, fundado em dezembro de 2011. São dez leitos subsidiados pelo SUS, localizados no hospital particular Recanto São Camilo – no bairro Jaçanã, Zona Oeste de São Paulo. Os pacientes, de 16 a 99 anos, vivem em media 15 dias. 70% apresenta câncer avançado.
Toda segunda-feira, uma equipe multiprofissional se reúne para discutir caso a caso de forma integrada. São médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionista, fonoaudiólogos, farmacêuticos e um capelão.
Segundo Ana Claudia, hospice é “uma filosofia de cuidados e um local onde é oferecido a assistência plena de cuidados paliativos”.
Seu discurso no TED, “a morte é um dia que vale a pena viver” tem mais de 600 mil visualizações. Seus cursos e palestras, direcionados a estudantes de medicina e ao público em geral, lotam. Ela considera que está fortalecendo-se como uma porta-voz da causa porque tem sido ouvida de uma forma muito interessada. “As pessoas podem não querer falar sobre a morte, mas elas estão querendo ouvir”, diz.
Conversamos sobre conceitos, preconceitos, dificuldades, últimos desejos e o processo da morte em si. Confira abaixo.
O que são cuidados paliativos?
É a assistência integral que será oferecida a pessoas com doenças graves que ameacem a continuidade da vida. Não é um risco iminente de vida, mas significa que aquela doença pode ser a causa de morte da pessoa. Há tempos de atuação dos cuidados paliativos. Na fase de diagnóstico da doença, por exemplo, o paliativo vai atuar mais como um suporte clínico, ajudando o paciente a dar conta do tratamento, especialmente em casos de câncer – por que no câncer você começa o tratamento de forma muito agressiva, para controlar a doença.
Num segundo momento, há o cuidado paliativo exclusivo, em casos de não melhora da doença ou em pacientes sem condições clínicas de fazerem um tratamento. Mas esse momento exclusivo pode significar uma expectativa de vida de horas ou de anos.
Que preconceitos precisam ser quebrados?
O preconceito de conversar sobre a doença, sobre a morte. De achar que falar a verdade mata. Alguns familiares pensam que se o parente souber a verdade, ele vai morrer, ele não vai aguentar. Mas o paciente pode se sentir abandonado e traído caso você se recuse a contar. A verdade não é uma obrigação, mas é um direito do paciente. A comunicação de más notícias faz parte da formação dos cuidados paliativos.
Também há o preconceito de que cuidado paliativo é desistir do paciente. Não somos a arte de suspender tratamentos, e sim de ampliar o cuidado para uma pessoa que está em extremo sofrimento devido a uma doença que não tem cura. A gente vai fazer intervenções para promover o conforto do paciente.
Há dificuldades em se ter um diagnóstico correto para encaminhar um paciente aos cuidados paliativos?
De jeito nenhum. Isso é má vontade médica. Há um documento da OMS (Organização Mundial da Saúde) com todos os critérios de indicação de pacientes para cuidados paliativos. Por exemplo, paciente com câncer metastático ou inoperável, doença cardíaca de classe funcional de 3 para 4, paciente com doença coronária obstrutiva crônica classe 3, paciente com demência classe 7… Isso é para atendimento de cuidado paliativo exclusivo, não é nem indicação de paliativo.
Alguns médicos mandam o paciente para paliativo para gerenciarmos problemas familiares, por termos fama de resolver bem conflitos. Algumas vezes já fui chamada na UTI para intermediar conflitos entre equipes, entre a família e a equipe ou dentro da família.
Qual é a diferença de um paciente que recebe cuidados paliativos para o que não o recebe?
O paciente que não recebe é tratado como uma doença. O que recebe é tratado como uma pessoa. Essa é a diferença essencial. Se eu olhar para você só como um câncer de mama avançado, eu me frustro. Porque sua doença não tem cura, você não está respondendo ao tratamento e você não passa de um câncer avançado. No olhar do cuidado paliativo, você passa a ser um ser humano, parte de um núcleo familiar e de um núcleo afetivo, que tem sonhos expectativas.
Na prática, significa a não intubação ou não ser ressuscitado, por exemplo?
Não necessariamente. Cuidado paliativo não deixa de fazer intervenções. A gente faz uma intervenção quando ela faz sentido para a qualidade de vida do paciente. Pensamos no objetivo do cuidado. Pensamos no momento presente. O paciente não tem tempo para desperdiçar com expectativas infundadas. Nos preocupamos com o conforto imediato dele.
Mas conversamos sobre objetivos e cuidados, que seria o testamento vital ou as diretrizes antecipadas de vida – o que o paciente espera do momento que ele está vivendo, o que ele espera de mim, o que espera do tratamento, e alinhamos as expectativas. Nesse momento, ele pode optar por não ter suporte artificial à vida, por exemplo. Não é automático, não seguimos protocolo.
Em alguns casos, eu indico uma intervenção, em outros não. Por exemplo, indiquei uma diálise, que é um procedimento muito desconfortável e com efeitos colaterais, para um paciente em final de vida porque ele gostaria de viver um pouco mais para conhecer o neto que nasceria em dois meses. Não se tratava de prolongar a vida a qualquer custo e com sofrimento. Havia um objetivo. Ele viveu três meses, viu o neto e realizou-se.
Como decidiu pelos cuidados paliativos?
Durante a faculdade (USP), sofri muito ao perceber que os médicos se importavam com as doenças e não com as pessoas. O sofrimento delas não era olhado. Até fui encaminhada a um grupo de suporte psiquiátrico para os alunos. Teve uma psicóloga que disse que eu não tinha condições de ser médica, por me envolver demais. Parei a faculdade, fiquei seis meses fora e fui trabalhar de caixa numa loja de departamentos para ajudar nas contas de casa. Mas eu não conseguia viver fazendo outra coisa. Voltei e me dediquei a pesquisar o que eu poderia fazer para aliviar o sofrimento das pessoas.
Decidi fazer geriatria porque eu achava que na geriatria a morte poderia ser mais aceita. Não encontrei bem isso, mas encontrei algo muito precioso que foi o aprendizado de trabalhar em equipe. Porque não são todos os médicos que trabalham em equipe. Eu li o livro da psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross (1926-2004), “Sobre a Morte e o Morrer”, que me inspirou para buscar uma formação em cuidados paliativos. Estudei no Instituto Palio, na Argentina, e na Universidade de Oxfort, porque no Brasil não haviam cursos disponíveis. Fiz uma especialização em luto com a equipe do 4 Estações e fui contratada pelo Einstein para implementar as políticas de assistência à dor e cuidado paliativo com o suporte da Joint Commission – instituição americana que fornece certificado de qualidade na assistência.
Aí, vim trabalhar no hospice do Hospital das Clínicas. Para mim, um hospice é o tratamento top de linha em cuidados paliativos. Porque numa enfermaria eu não consigo usar toda equipe, aqui sim.
Quais são as conquistas dos cuidados paliativos até agora no Brasil?
 Ainda é cedo para falar em conquistas. Mas o hospice é uma. O mundo público começa a ter noção da importância e da qualidade que essa assistência pode oferecer a essas pessoas. O mundo privado também começa a reconhecer nessa assistência a possibilidade de qualidade e de uma boa gestão de custos.
O gerenciamento dos recursos nas mãos do cuidado paliativo é muito mais efetivo. Porque eu vou oferecer aquilo que o paciente precisa e tratar outras questões, como as espirituais e emocionais, que melhoram as condições clínicas do paciente, e assim, otimizam recursos.
Quais são as limitações de ser considerada uma área de atuação e não uma especialidade médica?
Eu acho que a especialização deveria ser uma consequência e não um objetivo. Tinha que ser parte da formação de todo médico. Tem que estar na grade curricular, porque o médico não tem que ser especialista em doença, tem que aprender a tratar gente. Para você tratar doenças, às vezes é considerado um empecilho o fato de ser uma pessoa que está doente.
O você acha das clínicas privadas focadas em cuidados paliativos?
Grande parte das clínicas privadas estão se aproveitando de uma certa moda de cuidados paliativos, mas de modo algum o praticam. Muitos desses médicos nem formação na área têm. Às vezes fizeram uma aula, participaram de um congresso e já se dizem especialistas. A equipe que trabalha com eles também não faz ideia do que seja. Se tiver formação, tudo bem, é cuidado paliativo, se não tem qualificação técnica para isso, não é. Isso é ruim porque dissemina a má prática médica.
Porque há poucos hospices no Brasil?
 No Brasil, as pessoas agem como crianças brincando de esconde-esconde. Tapam os olhos com as mãos e pronto, estamos escondidos. É o princípio de que se eu não te vejo, você não me vê. Essa é a perspectiva que o brasileiro, a cultura brasileira, tem da morte. Se eu não olho para a morte, ela não me vê.
O uso de morfina é uma discussão?
Sim. Tem uma instituição que estuda o consumo de morfina prescrita per capita no planeta. O país que mais prescreve morfina é a Áustria – 100 mg per capita. Em segundo lugar, está o Canadá, com 70 mg. A média mundial é de 6,5 mg per capita. No Brasil é 1,5 mg per capita.
Isso é bom ou ruim?
 Péssimo. Porque aqui as pessoas morrem com muita dor. Não se usa morfina porque ninguém aprende a usar. Há má formação e o preconceito de que morfina vai dar depressão respiratória, de que ela vicia. Estudos populacionais do uso morfina indicam menos de 0,01% de risco de vício. Essas poucas pessoas que ficam adictas já eram adictas a outras coisas. Elas tinham um perfil de predisposição. No Brasil as pessoas morrem mal e urrando de dor.
Porque você diz que aqui é um país ruim para se morrer?
A “The Economist” fez um estudo em 2010 sobre a qualidade do morrer em 40 países. O Brasil ficou em 38º lugar. Eles levaram em consideração o número de leitos para cuidados paliativos disponíveis nos hospitais, a existência de estruturas com hospices, formação na faculdade e horas de treinamento.
Vocês satisfazem últimos desejos aqui?
É nossa especialidade! As pessoas pensam que os últimos desejos são complexos, como pular de paraquedas, mas na verdade eles são simples. Os pacientes pedem para ver o neto, o cachorro, comer o prato predileto, tomar um refrigerante, comer pastel na feira, brindar com champanhe. São coisas da experiência humana. Temos histórias lindas.
Gosto de um poema do Manoel de Barros em que ele diz: tem histórias que são tão verdadeiras que parecem inventadas.
Há algum aspecto não cultural na morte?
Acho que o não cultural é, para mim, a necessidade de conforto físico. Isso independe da cultura. Acho também que a amorosidade no final da vida é semelhante a todo ser humano. E a vontade perdoar e ser perdoado.
Vejo esse processo muito claramente na dissolução dos quatro elementos. Em primeiro lugar, temos a dissolução da terra, que é o adoecimento do corpo. Quando você se percebe muito doente, você passa para uma introspecção, para a busca da sua essência. Essa introspecção caracteriza a dissolução da água. Fisicamente, se traduz numa redução de líquidos corporais ao pé da letra (você faz menos xixi, toma menos água, tem menos produções de líquidos gástricos, a pele fica mais seca e o corpo emagrece). Do ponto de vista de comportamento, a pessoa torna-se mais quieta. O acesso a essa pessoa vira um privilégio da família ou da família escolhida, porque há a vontade de ter apenas os mais íntimos por perto. Nessa busca da essência, você vai ter a dissolução do fogo. Cada uma das células do corpo busca fazer o melhor que pode, desempenhar sua função ao máximo. Aí há uma repentina melhora do quadro clínico do paciente. É a famosa visita da saúde – a melhora antes da morte. Em algumas situações vai dar febre, principalmente se a pessoa tiver inconsciente.
O paciente consciente vai expressar sua essência, que eu acredito ser a amorosidade. A gente passa a vida tentando esconder isso. Quando ele encontra essa essência, eu digo que ele encontra o que tem de sagrado nele e aí começa a dissolução do ar, que é a devolução do sopro vital. A gente devolve para o universo o sopro que foi emprestado quando nascemos. Pode demorar horas ou dias.
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OBS: Ana Claudia me mostrou uma música que aproveito para incluir nessa entrevista. Gilberto Gil canta “não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer”. Veja a letra aqui e o vídeo abaixo.






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