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sexta-feira, 1 de maio de 2015

Adultério no tubo de ensaio

Adultério no tubo de ensaio

Uma sentença mostra as falhas no controle da identidade na reprodução assistida



O senhor X foi enganado por sua esposa, que o trocou por outro homem durante uma inseminação in vitro em uma clínica em Barcelona. / CARMEN VALIÑO


Seis anos depois de ver seu filho nascer, cuidá-lo e pagar por sua manutenção, o britânico senhor X descobriu “horrorizado” que sua ex-mulher o enganara: o filho era de outro. História velha, giro novo. A infidelidade não aconteceu num motel, mas em um tubo de ensaio de uma prestigiosa clínica reprodutiva catalã. A confusão acabou em uma recente sentença de um tribunal de Londres. Os fatos provados parecem saídos de uma telenovela...

O acomodado casal inglês procurou em 2004 o Instituto Marquès de Barcelona com a intenção de que o sêmen do senhor X fecundasse in vitro um óvulo doado que seria transferido ao útero da senhora Y. É feita a entrevista, pedem a documentação e os dois assinam um consentimento que informa o que vai acontecer. É congelado o sêmen do senhor X. Quatro meses depois, a senhor Y volta à clínica com outro homem – seu ex-namorado, o senhor P – que, fazendo-se passar pelo senhor X, produz uma nova amostra de sêmen. A clínica não confirma sua identidade e registra a segunda amostra – a que finalmente foi usada –, como se fosse também do senhor X. Uns dias depois, os embriões são colocados na senhora Y. Após nove meses, no outono de 2005, nasceu um menino que chamaremos de Z. Para protegê-lo, a juíza ordenou o anonimato dos implicados.
A sentença não é, em nenhum momento, contra a clínica, mas revela a falta de protocolos obrigatórios nestes centros. Como o sêmen de um homem pôde terminar com o nome de outro com tanta facilidade? “A lei é muito vaga, por isso cada uma controla a identidade à sua maneira”, responde Esther Farnós, professora adjunta de Direito Civil na Universidade Pompeu Fabra e especialista em consentimentos de reprodução assistida e falsas atribuições de paternidade. Resultado: “Acontecem enganos que poderiam ser evitados simplesmente com a exigência da carteira de identidade e um pouco de atenção”.
Não estamos aqui para evitar estas coisas... E não somos responsáveis”, diz a clínica.
Consultadas várias clínicas, espanholas e britânicas, algumas dizem que pedem sempre que uma amostra é depositada; outras não, ou nem sempre. “Já conhecem o casal”, “termina sendo agressivo”, repetem, “se quiserem enganar, enganam”. Muitas tomam fotos dos pacientes, mas alguns se negam. Todas aceitam que seja outra pessoa que leve a amostra de sêmen (por exemplo, a mulher), mas enquanto em algumas é necessário que o homem assine presencialmente e com identidade uma autorização prévia, em outras basta que a mulher chegue com o papel (ou o recipiente) assinado.
“Uma assinatura é facilmente falsificável... Mas o que vamos fazer, contratar um perito?”, se pergunta a doutora Marisa López-Teijón, chefa do serviço de reprodução assistida do Instituto Marquès, que quer diminuir a excepcionalidade do caso do senhor X e enumera erros “inevitáveis”: casadas que dizem ser solteiras se inseminam e fazem o marido acreditar que as engravidou de forma natural; maridos que “para incomodar” sua mulher dão o sêmen de outro; personagens conhecidos que chegam com pares que evidentemente não são seus cônjuges; muçulmanas inseminadas pelos irmãos de seus maridos estéreis, como dita sua religião; inclusive “boris beckers” (mulheres que tentam se inseminar com o sêmen recolhido em uma felação). “Os enganos entre casais são contínuos, aconteceu e vai voltar a acontecer”, diz López-Teijón. “O único que nos preocupa é não errarmos, não que eles se enganem um ao outro. Nós, médicos não somos policiais.” E voltando ao caso do senhor X: “Não foi um erro, não há responsabilidade legal. Não estamos aqui para evitar estas coisas... E o problema não é nosso”, finalizou.
Às vezes acendem os alertas. A doutora López-Teijón lembra uma ocasião na qual uma mulher chegou com uma segunda amostra de sêmen assinada por seu marido, porque a primeira não tinha qualidade. No laboratório, viram que era impossível que o fértil sêmen recém-entregue fosse do mesmo homem. Suspeitando de jogo sujo, a clínica ligou para a esposa. Disseram que “a amostra tinha caído no chão” e que precisariam de uma terceira do marido. Ela não voltou. No caso do senhor X não perceberam a mudança, “porque o sêmen das duas amostras não era tão diferente”.“Embora não exista responsabilidade, houve má práxis”, opina Esther Farnós. “É verdade que algumas fraudes não podem ser evitadas, mas esta, sim”. “Uma amostra de sêmen tem consequências em matéria de filiação, é muito forte que, sendo algo tão sério, não se exija algo tão simples como uma identificação”, diz. “O problema é que não há regulamentações, nem sequer diretrizes voluntárias... E ocorreu um lobby muito forte pois este vazio legal é bom para fazer negócio”. “Eu não seria partidário de obrigar as clínicas a pedir a identidade cada vez”, refuta Fernando Abellán, assessor jurídico da Sociedade Espanhola de Fertilidade. O motivo: “Burocratizaria o processo, complicaria o modus operandi comum para evitar um caso excepcional”. E suaviza: “O normal é que a clínica tivesse detectado o erro e avisado. Mas pode acontecer, um centro deve ser proativo para esclarecer a identidade e o estado civil, mas não pode ser em um nível policial.”
Para tornar ainda mais rocambolesco o caso, em 2005, enquanto a senhora Y e o suplantador estavam em Barcelona, a clínica ligou para a casa da mulher em Londres. O senhor X atendeu. “Me perguntaram quem eu era e pareceram surpresos”, diz. A ligação colocou uma dúvida no marido. Perguntou a sua esposa. “Você foi com outro?”. Ela confessou, e depois, sempre segundo X, inventou que, arrependida, tinha pedido que usassem o primeiro sêmen. Ele acreditou.
Esther Farnós: “Acontecem enganos que poderiam ser evitados só exigindo a identidade”
Anos depois, em 2007, quando o casal já tinha se divorciado, uma desconfiada namorada do senhor X pediu que confirmasse com a clínica se efetivamente tinham usado a primeira amostra. Responderam que sim. “Uma informação equivocada”, diz a sentença. Por quê? “Não imagina as besteiras irrelevantes que nos perguntam”, responde a doutora López-Teijón. “O homem deveria ter sublinhado que sua pergunta era importante”.
A versão da senhora Y no julgamento (o EL PAÍS não conseguiu entrar em contato com ela por causa do anonimato) é que o senhor X sempre soube que ela tinha ido a Barcelona com P e ela nunca o enganou. Diz que foi a clínica que se confundiu. “O senhor X confiou na palavra e nos atos de sua mulher e a informação fornecida pela clínica simplesmente corroborou o que ele já acreditava”, conclui, no entanto, a sentença. Também o senhor X: “Nunca pensei em denunciar a clínica, minha ex os enganou tanto quanto me enganou”, diz agora o senhor X. “Talvez tenham cometido um erro e a incompetência deles consolidou minha crença de que era meu filho, mas não fizeram isso de propósito”.
A criança tem o sobrenome do senhor X e, depois da separação, ele pagou durante anos a pensão que lhe correspondia e atuou como pai. O senhor X descobriu que não era o pai de Z em 2011. A mãe contou quando ele entrou com um processo por irregularidades no regime de visitas. Teve que fazer um teste de DNA para acreditar. Na sentença não fica claro quando o menino descobriu, mas que P sempre esteve mais ou menos presente em sua vida, e que agora é seu pai oficial.
“Os enganos em reprodução assistida ocorrem pelo menos tanto quando ocorrem na rua”, diz a doutora López-Teijón, citando um estudo que calcula que entre 5% e 10% dos filhos não são de seus supostos pais. “E cada vez há mais gente nas clínicas”, acrescenta a jurista Farnós, “que funcionam por tentativa e erro com casos com estes que mostram as falhas do sistema”.
Por uma dessas falhas nasceu Z. Resumindo uma complexa história de mentiras, dinheiro, amostras de sêmen e vingança, um tribunal familiar retirou em 2013 a paternidade do senhor X (deixando as visitas de acordo com a vontade de sua ex-mulher). X decidiu pedir uma indenização por danos e prejuízo e uma sentença de março passado obrigou a senhora Y a pagar 54.000 euros (173 mil reais). O valor não inclui a manutenção paga (19.500 euros anuais; os dois cônjuges, dedicados à formação de altos executivos, tinham ingressos de mais de 140.000 euros anuais). O juiz entendeu que durante esses seis anos X havia desfrutado da criança. Nos últimos 18 meses, X e o menino se encontraram por apenas 10 minutos. “Espero que quando fizer 18 anos, venha me procurar”, diz X. “É trágico: arrancaram uma criança de seu pai e puseram um novo no lugar”. Aquele que um dia entregou um frasco de sêmen com um nome que não era o seu e enganou todo mundo.
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito

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