Doença genética letal do primeiro filho de Tatiana fez com que pais optassem por examinar DNA de embriões em nova tentativa de engravidar (Foto: Arquivo pessoal/BBC)
"Quando o médico falou pra nós que a doença não tinha tratamento nem cura e que meu filho poderia falecer aos dois anos foi um choque. A gente foi tentando viver um dia após o outro para não pensar na morte dele."
Oito meses após o nascimento de seu primeiro filho, a fisioterapeuta Tatiana Vasconcelos, de Presidente Prudente (SP), descobriu que ele era portador da gangliosidose GM1 tipo 1, uma doença genética que afeta uma a cada 100 mil pessoas. Cumprindo o prognóstico dos médicos, Leonardo faleceu pouco depois de completar dois anos.
Após o diagnóstico, o casal descobriu que a doença estava nos genes de ambos, apesar de nunca ter se manifestado em suas famílias. Por causa da gravidade da condição, os médicos também vetaram uma nova gravidez.
"Pensamos em ter outro filho para fazer um transplante de medula óssea, mas o nosso médico geneticista disse que (isso) não ajudaria o Leo. Ele também disse que não deveríamos engravidar novamente por vias naturais por causa do risco de termos outros filhos doentes. Aí caiu outro balde de água gelada, porque sempre sonhamos em ter mais filhos", disse Tatiana à BBC Brasil.
Desde então, o casal considerou submeter-se a um processo de fertilização in vitro com diagnóstico pré-implantacional – procedimento em que o examina-se o DNA dos embriões, em seus primeiros estágios de formação, para selecionar somente os que não teriam a possibilidade de desenvolver a doença.
Apesar do alto custo – o procedimento completo pode chegar a R$ 30 mil – a procura por testes deste tipo no Brasil cresceu até 40% nos últimos três anos, segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
A opção pelo diagnóstico pré-implantacional, no entanto, não é tão simples: os pais costumam enfrentar dilemas morais e a resistência de colegas e familiares à decisão de descartar determinados embriões e manter outros.
'Contra Deus'
Para Tatiana e seu marido, as decisões difíceis começaram ainda no período em que Leonardo estava vivo.
Aos três meses, o garoto começou a apresentar sinais da doença e, com pouco mais de um ano, tinha crises convulsivas e parava de respirar durante 30 a 40 segundos. Os pais se revezavam à noite para permanecer ao lado do filho e aplacar as crises.
"Quando o levamos para a UTI, o médico me disse que não havia muito o que fazer e perguntou se eu queria que ele fosse entubado, caso fosse necessário. Eu trabalho em UTI, então para mim foi muito difícil decidir. Como eu não iria querer que ele salvasse meu filho? Ao mesmo tempo, só iríamos prorrogar o sofrimento dele. Meu marido e eu não queríamos mais vê-lo sofrer e optamos por não entubá-lo, apenas mantê-lo sedado até a hora em que ele tivesse de ir."
Leonardo chegou a se recuperar e voltou para casa, onde seus pais montaram uma espécie de UTI doméstica. Com dificuldades renais crescentes, ele viveu mais um ano, passando por internações frequentes no hospital.
"Em novembro de 2013, ele estava em situação muito grave. Ele só ficou dois dias internado na UTI dessa vez, nós o vimos ir embora aos poucos. Nosso amor segurou muito ele aqui", relembra Tatiana, emocionada.
Meses após a morte da criança, o casal decidiu ter outro filho via fertilização com o diagnóstico pré-implantacional. A fisioterapeuta conta que, apesar do apoio dos amigos, sofreu preconceito dentro da própria comunidade médica.
"A maioria dos familiares e amigos me apoiou, mas alguns médicos com quem eu trabalho acharam um absurdo. Eles diziam que era antiético, contra a moral e contra Deus. Mas eu não estava escolhendo cor de cabelo, cor dos olhos, se é menino ou menina. Estava tentando excluir uma doença que matou meu filho", afirma.
Não é para todos
O geneticista Salmo Raskin, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e criador do laboratório Genetika, no Paraná, diz que a mobilização da sociedade civil em torno de doenças raras influenciou o aumento da procura pelo diagnóstico pré-implantacional.
"O crescimento de movimentos da sociedade civil no Brasil fez com que surgissem ONGs de pacientes de familiares de pessoas com doenças genéticas. Essas pessoas vão transmitindo informações sobre os testes para outras", afirma.
"O índice de natalidade no Brasil também caiu drasticamente, então se existe já alguém na família com uma doença hereditária, as pessoas querem evitar passá-la para seus filhos, já que terão menos filhos do que antigamente."
O grande avanço da pesquisa científica sobre o genoma humano nos últimos dez anos também barateou o custo do escaneamento de genes - e ajudou a popularizar os testes genéticos. Desde 2014, os planos de saúde brasileiros já cobrem 29 testes para doenças genéticas específicas, desde que requisitados por geneticistas.
Testes com variados níveis de complexidade podem ir de R$ 70 a R$ 10 mil. Em alguns casos, as pessoas podem encomendar uma análise do seu DNA que busca traços de até 800 das doenças genéticas mais comuns na população mundial – entre cerca de 15 mil conhecidas.
Raskin diz, no entanto, que nem todos os testes genéticos têm verdadeira utilidade para os pacientes, já que o conhecimento atual da genética humana ainda tem muitas lacunas.
Para o geneticista, testes que buscam determinadas doenças genéticas que já estão presentes na família, ou que buscam traços de uma doença nos pais a partir do diagnóstico do filho, como no caso de Tatiana Vasconcelos, são os que oferecem mais retorno aos pacientes.
"A indicação é não fazer o teste apenas por curiosidade e sem o acompanhamento de um geneticista. É um procedimento caro e que não será muito útil para quem não sabe o que procura. E ainda pode ser maléfico, por causar pânico", afirma.
Opção
Para a fisioterapeuta baiana Nadja Quadros, de 41 anos, a descoberta, durante a segunda gestação, de que a filha teria síndrome de Down provocou "luto" – mesmo que ela lidasse diariamente com crianças na mesma condição.
"Entrei em crise porque percebi que eu não era a profissional que aparentava ser. Eu dizia aos pais que as crianças com Down poderiam ter uma vida plena como as outras crianças, mas, quando me vi diante daquela realidade, eu imaginei que seria um fardo na minha vida", disse à BBC Brasil.
No entanto, ela reconhece que o nascimento de Ana Beatriz, há cinco anos, mudou para melhor a vida do casal. Em pouco tempo, Nadja e o marido, também médico, haviam criado um programa de pós-graduação sobre o tema, um centro de referência no atendimento de portadores da síndrome de Down no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), em Brasília, onde moram, e uma ONG que luta pela inclusão dos portadores da síndrome de Down na sociedade.
"A vinda de Ana Beatriz teve um propósito muito grande em nossas vidas, mas ainda não estou completamente bem resolvida. Ela tem uma vida plena hoje, mas o futuro é uma preocupação minha. Ainda existem muitas barreiras sociais para pessoas como ela e eu milito porque quero mudar essa realidade.
Mesmo engajado, o casal também optou pela fertilização com diagnóstico genético dos embriões ao decidir ter o terceiro filho, para evitar uma nova ocorrência do distúrbio, cujas chances aumentam com o avanço da idade da mulher.
"Minhas chances (de ter outra criança com síndrome de Down), nem eram tão grandes, mas eu tinha muito medo. Minha vida é tranquila com Beatriz, mas eu não queria correr o risco de ter outra criança na mesma condição."
"O impacto emocional e financeiro de um distúrbio genético na família é grande. Há crianças que nascem muito comprometidas, precisam de tratamento e estímulo para desenvolvimento. Nós pudemos fazer tratamentos, mas há muitos pais que estão aqui em uma fila enorme esperando uma cirurgia cardíaca, por exemplo", afirma Nadja.
Nadja submeteu-se a um procedimento semelhante ao de Tatiana, mas que analisa somente os cromossomos dos embriões – já que a síndrome de Down é causada por uma alteração cromossômica aleatória. Em fevereiro, o casal recebeu a confirmação da gravidez de Rafael, cujo nome foi escolhido pela irmã.
Para o geneticista Ciro Martinhago, que cuidou tanto de Tatiana quanto de Nadja, o desconhecimento sobre a técnica ainda estimula certo tabu na sociedade.
"As decisões se tornam mais difíceis porque nem todas as doenças genéticas são letais. É possível, apesar de muito difícil, conviver com elas. A maioria dos pais com Down ama seus filhos e diz que não deixaria de tê-los. Mas hoje você tem a opção de prevenir a ocorrência de uma doença, antes não tinha", disse à BBC Brasil.
"Já me perguntaram se eu me sinto Deus escolhendo embriões. Eu respondi que não, pelo contrário. Me sinto um instrumento de Deus. Se Deus não me permitisse, eu não estaria fazendo o que eu faço."
Organizações religiosas em todo o mundo se dividem em relação ao procedimento. A Igreja Católica posicionou-se repetidas vezes contra a manipulação e a seleção de embriões humanos.
'Eugenia positiva'
Martinhago diz que 70% dos testes que faz atualmente em embriões são para detectar alterações cromossômicas, como as que causam a síndrome de Down. O procedimento custa entre R$ 1.200 e R$ 1.900 por embrião.
Em outros casos, casais que têm conhecimento prévio de doenças na família podem fazer um teste conhecido como matching, para saber quais são as chances de que os filhos venham a ter as mesmas doenças. Neste caso, o preço chega a R$ 6 mil.
A escolha de embriões pelo sexo ou por outras características físicas – ideia que preocupa muitos brasileiros, segundo Martinhago – não é permitida no Brasil. "Selecionar embriões por características físicas é uma eugenia negativa. Nós fazemos uma eugenia positiva, que é separar os embriões perante as doenças graves que podem acometer a criança", afirma o geneticista.
Assim como Nadja Quadros, Tatiana Vasconcelos não considerava o aborto uma opção. No entanto, ela defende que pais possam se prevenir das doenças, que causam desgaste físico e emocional.
"Os testes genéticos evitam o sofrimento de uma criança e de uma família inteira. Se eu soubesse que havia a chance de uma doença entre eu e meu marido, teria feito todo o escaneamento. Depois que já tínhamos nosso filho, pensamos apenas em enfrentar o que Deus mandou, mas se a gente pode evitar, eu acho que é válido", afirma.
Em janeiro, Tatiana fez uma segunda tentativa de fertilização, após selecionar geneticamente os embriões livres da doença que matou Leonardo. Agora, está à espera de gêmeos. "Sei que, onde estiver, Leo está torcendo por nós", diz.