Como é ser mãe de uma menina transgênero
“Mas mãe, eu sou menina!”. Mulher compartilha as dúvidas e alegrias de aceitar que sua filha é transgênero desde os quatro anos, e aposta nas pesquisas que apoiarão sua decisão
Marlo Mack compartilha as dúvidas e alegrias de aceitar que sua filha é transgênero desde os quatro anos, e aposta nas pesquisas que apoiarão sua decisão
Quando o suicídio da adolescente transgênero Leelah Alcorn ganhou as manchetes, meus amigos que têm filhos não-transgênero fizeram questão de me parabenizar pela maneira que educo minha filha: “Isso não vai acontecer com ela porque você está agindo de maneira diferente”, disseram. Pode ser verdade, mas eu ainda não tenho certeza. A verdade é que ninguém tem.
Minha filha, aos três anos, me disse que era uma menina. Ela me olhou nos olhos e disse, “Mamãe, alguma coisa deu errado na sua barriga que me fez sair menino ao invés de menina”. Ela queria voltar para dentro de mim para que ela pudesse sair de novo, como menina.
Desde os dois anos ela vinha implorando para que eu a vestisse com as roupas bonitas que ela via as outras menininhas vestirem e ficava obcecada com as coisas que meninas costumam amar, como princesas e fadas e cor-de-rosa. A princípio eu presumi que tudo aquilo era só uma fase. Eu disse que ela podia gostar de rosa e brincar com as bonecas, mas ela tinha um corpo de menino, então ela era menino. Quando ela continuou a afirmar que era menina, eu fiz o que os pais fazem – eu fui consultar especialistas. Eu levei minha filha para nosso pediatra e mais de um terapeuta, inclusive um psicólogo que se especializava em trabalhar com crianças como a minha – garotos que se sentem garotas, garotas que se sentem garotos.
Eu procurava respostas desesperadamente para minha longa lista de perguntas: será que eu devo permitir que minha filha troque de gênero aos quatro anos, ou devo obrigá-la a viver como menino? Que chance havia de que ela mudaria de ideia? Haveria algum dano a longo prazo se nós mudássemos de garoto para garota e então de volta para garoto? Por outro lado, quais eram os riscos de forçar uma criança a continuar a viver como garoto quando isso lhe causava tanta angústia?
Em todos os casos, os especialistas que eu consultei ofereceram as mesmas respostas para minhas perguntas. Eles não sabiam. Eles deram de ombros pedindo desculpas, deram alguns conselhos vagos, e admitiram que não há na verdade qualquer pesquisa confiável sobre crianças como a minha.
Então eu tive que improvisar. Meu impulso inicial não foi muito diferente daquele dos pais de Leelah Alcorn. Eu cheguei à conclusão de que minha filha era provavelmente um tipo mais incomum de garoto – quem sabe um garotinho gay que necessitava minha orientação. Essa é a premissa por trás da agora infame “terapia de conversão” a que Leelah Alcorn teve que se submeter numa tentativa de curá-la de sua identidade transgênero. E apesar disso disparar alarmes entre aqueles que consideram isso tão antiético e desumano quanto as terapias propostas pelo movimento “ex-gay”, a realiade é que esse tipo de tratamento ainda é praticado e promovido por alguns dos profissionais médicos mais influentes que trabalham atualmente com crianças transgênero.
Quando famílias com crianças pequenas como a minha buscam respostas na Clínica de Identidade de Gênero de Crianças e Adolescentes no Centro de Saúde Mental de Toronto, são recebidas por funcionários que não gastam tempo discutindo os lados positivos ou negativos de se experimentar com o sexo oposto. De acordo com o diretor da clínica, dr. Kenneth Zucker, uma vida adulta como transgênero constitui um resultado negativo, o resultado infeliz de um sistema familiar patológico centrado na mãe (claro…). Zucker argumenta que crianças como a minha não deveriam ter permissão para brincar com “brinquedos de menina” nem ter acesso a roupas ou cores femininas. Pelo contrário, esses jovens clientes são incentivados a se envolverem em atividades estereotipicamente masculinas e devem passar mais tempo com seus pais. Mãe como eu são aconselhadas a fazerem terapia para se arrancar a fonte do problema pela raiz, provavelmente um desconforto com masculinidade internalizado ou quem sabe um desejo intenso mas reprimido de que a criança fosse de outro gênero. Ainda mais confuso é o fato de que Zucker já escreveu que a arma do crime pode ser “indisponibilidade materna” ou, por outro lado, “excesso de proximidade” materno. (Apenas para você não cometer o erro de pensar que Zucker é um pária nos recantos distantes da prática freudiana, considere que em 2012 ele era membro do grupo de trabalho sobre desordens sexuais e identidade de gênero da Associação de Psiquiatria Americana, o painel de experts que literalmente escreveu o livro sobre como os profissionais da saúde mental devem avaliar e tratar os clientes transgênero.)
Logo no início eu experimentei uma variante mais suave do sistema de Zucker com minha filha. Eu tentei incentivá-la a fazer atividades mais “masculinas”, sugeri aulas de caratê quando ela pediu para entrar na aula de balé (nós chegamos a um meio-termo matriculando-a numa aula de ginástica olímpica mista). Ela queria um guarda-roupa todo cor-de-rosa; eu insisti em vermelho, roxo, azul pastel. Eu a incentivei a brincar mais com meninos e a passar mais tempo com seu pai.
Mas, em última instância, eu não consegui suportar a ideia de negar a minha filha as coisas que ela amava nem aguentei vê-la tão infeliz. Seu último natal como um garoto foi um desastre. Depois de abrir todos os presentes, ela sentou-se melancolicamente entre as pilhas de papel de embrulho rasgado e avaliou a coleção de caminhõezinhos novinhos em folha, equipamentos de esporte, blocos de montar, e bonequinhos de dinossauro. “Papai Noel não recebeu minha cartinha?”, ela perguntou.
Eu observei enquanto ela corajosamente tentava juntar algum entusiasmo por um caminhãozinho com rodinhas roxas e eu jurei que Papai Noel jamais destroçaria o coraçãozinho da minha filha novamente.
Mas o ponto decisivo de verdade aconteceu por volta de um ano depois que ela me contou que era uma menina pela primeira vez. Eu participei de um grupo de apoio para pais de crianças transgênero ou de gênero fora dos padrões e ouvi uma história que me deixou acordada à noite pelas semanas seguintes. Uma jovem mãe estava sentada na minha frente, do outro lado da mesa, soluçando enquanto abria o coração e nos contava o que aconteceu com sua filha de cinco anos quando um psicólogo local aconselhou um tratamento similar ao proposto por Zucker.
“Eu escondi todas as bonecas dela, todas as coisas de que ela mais gostava. Eu disse a ele que ele era um menino e pronto, porque foi o que o psicólogo aconselhou que eu fizesse”, ela disse. Em poucos meses, aquela criança parou de falar e foi diagnosticada com depressão profunda. “Eu quase o perdi”, ela disse.
Essa história me assombrou porque minha filha havia começado recentemente a entrar num processo semelhante. Depois de meses lutando comigo (“Eu sou menina!”), a criança estava desistindo. Ela deixou de me corrigir quando eu usava o “nome de menino” que ela odiava, dava de ombros quando eu sugeria novamente que ela fizesse caratê, e observava silenciosamente com tristeza o brilho do rosa proibido no corredor “de meninas” da loja de brinquedos. Outra mãe do grupo de apoio havia presenciado o mesmo fenômeno com sua filha e descreveu isso perfeitamente: “Minha filha de quatro anos parecia ser um velho cansado”.
Eu decidi que já não dava mais. Eu sentei com minha filha, olhei nos olhos dela, e perguntei pela última vez: “Você quer mesmo ser menina?”.
“Eu não quero ser menina, mamãe”, ela disse. “Eu usou menina.”
Três anos mais tarde, eu sou a mãe de uma filha transgênero de sete anos, esplendidamente feliz e confiante. Ela está entre as primeiras da classe, é popular na escola, e um sucesso em todos os aspectos. Eu tive a sorte de viver numa cidade que tem uma comunidade de famílias com crianças transgênero cúmplice e unida. Nós nos encontramos mensalmente para conversar sobre nossas lutas e nossos medos, trocamos anedotas, e incentivamos uns aos outros. Sentimos pesar pelos filhos e filhas que perdemos e nos deliciamos com os que ganhamos inesperadamente. Levamos nossos filhos para brincarem nas casas uns dos outros para que eles conheçam outras crianças como eles. (Se você quer saber como é alguém feliz de verdade, esteja no quarto quando duas garotas transgênero de seis anos se encontram pela primeira vez.)
Nós temos quase certeza de que estamos no caminho certo. Esperamos que sim, cheios de esperança. Nossos filhos, que já foram miseráveis num gênero, agora estão decolando no outro. Os pais “veteranos” – aqueles com filhos pré-adolescentes ou adolescentes cujos filhos fizeram a transição há mais de cinco anos – nos contam como seus filhos estão vivendo e eu fico pasma por como as vidas deles parecem ser totalmente comuns, como eles têm que lidar com os desafios prosaicos da adolescência: notas, comparação com os colegas, namoro, vestibular.
Mas apesar do retrato cor-de-rosa, a verdade é que na maior parte dos dias nós estamos voando cegos – e isso é muito assustador. Mesmo com todos os casos e histórias de sucesso que recolhemos, sem qualquer pesquisa consistente que nos apoie, nós pais ainda somos facilmente considerados (por Zucker e outros profissionais) como pais superliberais e sem pulso, ou birutas patológicos que de alguma forma corromperam e manipularam seus filhos para que vivessem como vivem agora.
Recentemente eu ouvi uma palestra de Aidan Key, um ativista transgênero famoso que foca seu trabalho em crianças como a minha. “O mundo está vigiando seus filhos”, Key disse para uma sala cheia de pais de crianças transgênero. “Eles são a primeira geração de crianças com a permissão para viverem em outro gênero. Seus filhos estão fazendo história.”
Suas palavras me deixaram arrepiada. Eu senti orgulho e medo: se tivessem essa escolha, quantos pais fariam a opção de seus filhos serem as cobaias num fascinante experimento social? Se houvesse a opção, claro, nós preferiríamos ter alguma ideia do que nos aguarda no futuro, algum indício de que meus amigos estão corretos quando me dizem que minha filha “não vai acabar como a Leelah, tadinha”.
Uma luz no fim do túnel apareceu no ano passado quando eu fiquei sabendo de uma pesquisa sendo feita na Universidade de Washington em Seattle. Conduzida pela psicóloga Dr. Kristina Olson, o TransYouth Project (projeto transjovem) é um estudo longitudinal a longo prazo de crianças dos EUA inteiro que fizeram a transição para outro gênero ainda no início da infância. Eu matriculei minha filha nele imediatamente.
Olson planeja acompanhar minha filha por toda a infância e além, conforme ela passa pela puberdade, atravessa o ensino médio, e entra na faculdade. A equipe de Olson vai conferir como está minha filha todos os anos, registrando seu desenvolvimento enquanto ela navega pelo mar revolto da pré-adolescência, tem seu coração partido por um garoto (ou garota?) no ensino médio, completa 18 anos e decide se quer realizar a cirurgia de adequação de gênero.
Olson admite que seu estudo tem limitações. “Como cientista, se eu vivesse num mundo imaginário, o estudo que eu realizaria dividiria essas crianças aleatoriamente em dois grupos: um que teria a permissão para viver no gênero diferente daquele com que nasceu, e outro que não. Mas eticamente nós jamais poderíamos fazer esse estudo, então nós fazemos o melhor possível.” Quem sabe um dia um pesquisador estudará esses dois grupos já adultos, fará comparações entre ele, e nós teremos uma boa noção de quem fez a aposta certa. (Não deve surpreender a ninguém que eu acredito que descobrirão que os métodos de Zucker são ineficazes e errôneos, se não danosos, pura e simplesmente.)
Enquanto isso, o estudo de Olson já revelou algumas coisas sobre as vidas das crianças vivendo como transgênero. Seus primeiros resultados, publicados na revista científica Psychological Science, valida minha própria experiência como a mãe de uma dessas crianças. “Em todas as avaliações que fizemos”, ela diz, “não é possível distinguir grupos de controle ou irmãos dos participantes transgênero da mesma idade. O que esses dados nos dizem é que essas crianças não estão apenas passando por uma fase. Pelo contrário, sua identidade de gênero parece ser uma convicção profunda.”
Eu prevejo que a pesquisa de Olson vai ser um marco histórico no debate sobre como cuidar da melhor maneira de crianças como a minha. “Em dez anos”, ela diz, “nós seremos capazes de começar a responder as perguntas que todos estão fazendo: como vai ser a vida de uma criança que, logo cedo, se identifica como transgênero? E como as decisões dos pais vai influenciar a vida dessa criança?”
Como a história de Leelah Alcorn já nos mostrou, compreender melhor as crianças transgênero não é apenas um exercício acadêmico interessante; é, literalmente, uma questão de vida ou morte.
Marlo Mack, Advocate. Tradução: Marcio Caparica, Ladobi
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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