TJRS
APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.TRANSGENÊRO. MUDANÇA DE NOME E DE SEXO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DETRANGENITALIZAÇÃO.
Constatada e provada a condição de transgênero da
autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização para efeitos de
alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil de
nascimento.
A condição de transgênero, por si só, já evidencia
que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua
real condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta
socialmente
DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
APELAÇÃO CÍVEL
OITAVA CÂMARA CÍVEL
Nº 70057414971 (N° CNJ: 0466124-36.2013.8.21.7000)
COMARCA DE PORTO ALEGRE
DAVID SILVEIRA SILVA
APELANTE
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por unanimidade em dar
provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário
(Presidente), os eminentes Senhores DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS E DES.
RICARDO MOREIRA LINS PASTL.
Porto Alegre, 05 de junho de 2014.
DES. RUI PORTANOVA,
Relator.
RELATÓRIO
DES. RUI PORTANOVA (RELATOR)
Pedido de retificação de registro civil proposto
por DAVID.
Na inicial a parte autora alegou ser transgênero e
pediu a mudança de seu nome para NATALY e o sexo para feminino.
O pedido foi julgado parcialmente procedente apenas
para alterar o nome, sem, contudo, alterar-se o sexo para feminino.
Apelou a parte autora. Pediu a mudança do sexo em
seu registro civil.
Sem contrarrazões.
O Ministério Público neste grau de jurisdição
manifestou-se pelo improvimento do recurso.
É o relatório.
VOTOS
DES. RUI PORTANOVA (RELATOR)
A apelante alegou que o laudo pericial foi favorável
à alteração do nome e do sexo. Sustentou que desde tenra idade sempre teve
conduta inclinada para o sexo feminino, noticiando traumas psíquicos e rejeição
social determinados pela inadequação de sua identidade biológica com sua
condição psicológica. Referiu possuir todas as características femininas,
embora não tenha realizado cirurgia de transgenitalização. Aduziu que a
alteração apenas do prenome é discriminatória, pois torna pública a sua
condição de transexual.
Estou provendo o apelo.
Basta ler as razões sentenciais (fls. 106/112) para
ver que a apelante realmente se encontra na condição de transgênero, tudo muito
bem embasado na prova dos autos.
Quanto a isso não há dúvida.
A questão que aqui se coloca agora é se é possível
alterar também o sexo constante do registro civil de NATALY, ou deve permanecer
como “masculino” até que ela realize a cirurgia de transgenitalização.
Segundo a sentença, “ante a inexistência de
regramento específico em nosso sistema jurídico, estabeleceu este juízo, para
deferimento da alteração de sexo, a realização do procedimento cirúrgico de
transgenitalização como marco identificador maior do processo de adequação do
sexo biológico de nascimento ao sexo psicossocial, o que se encontra ausente no
presente caso.”
“Data venia”, penso que a solução deve ser outra.
Antes de mais, vale a pena ter em conta que, a
eventual falta de “regramento específico” a respeito de determinada questão
jurídica, não é motivo para o juiz deixar de julgar um determinado pedido. Nem
assim, não havendo proibição, julgar, sempre e sempre, contra os interesses da
parte.
O consagrado instituto da lacuna (seja do Direito
ou da Lei) viabiliza, com amparo legal (desde sempre) que o juízo decida
utilizando o seu convencimento razoável.
No presente caso, "data venia", é
plenamente possível acolher o pleito da parte apelante.
Primeiro porque não estamos a discutir um problema
de sexo, mas de gênero, “masculino” ou “feminino”.
A parte autora alegou e provou que,
psicologicamente, ostenta a condição de mulher, embora tenha sido registrada
como homem, provavelmente em face da existência de pênis.
Tanto é assim que seu nome foi alterado pela
sentença, que, neste ponto, não merece qualquer reparo.
Contudo, renovada vênia, reconhecer a condição de
uma pessoa como sendo a de uma mulher, alterando seu nome, sem, contudo, mudar
a sua designação de sexo em seu registro civil, em meu entendimento, mostra-se
uma tanto quanto desarrazoado.
Digo isso, em face do fato de, agindo assim, o
Poder Judiciário causa a parte uma situação mais socialmente constrangedora a
parte do que se tivesse deixado tudo como estava.
Não há perder de vista que, tanto o nome, quando a
designação sexual constantes do registro civil serve para identificar a pessoa
perante o meio social.
E se NATALY hoje se identifica como mulher, é essa
a condição que seu registro civil deve espelhar.
Mas não é só.
Sabemos que o nome de uma pessoa tem significado
não só no meio social como também para ela mesma. É através do nome, e de sua
designação sexual, que a pessoa se vê como indivíduo e é vista socialmente.
Nesse passo, tão ou mais importante que mudar o
nome de uma pessoa em casos como o presente, é a modificação de seu gênero.
E para tão não se faz necessário a sua
transgenitalização, pois gênero e sexo não se confundem.
Até agora, o pênis nunca foi dificuldade para
Nataly ser e viver como mulher que é. De seu corpo ela tem total liberdade de
fazer o que bem entender.
Não é pela existência de uma genitália masculina
que define o gênero masculino. Com efeito, essa apenas uma característica
masculina, que não prevalece quando se está diante de uma pessoa transgênero.
Além disso, é necessário ver essa questão com os
olhos voltados mais para o indivíduo e sua dignidade do que para o meio social.
Veja-se que, sexualmente, desde a sua condição
íntima até do ponto de vista público e social, NATALY não aparecerá como homem,
mas como mulher.
E, para ela, como indivíduo, também já se vê como
mulher, e não como homem.
Nesse passo, a falta de regramento específico, em
meu ponto de vista, não justifica a manutenção do “masculino” como sendo a
designação do gênero da autora em seu registro civil de nascimento.
Vale a pena até tomar em consideração o próprio
nome de cada um e sua importância na identificação do sexo. Certo, há alguns
nomes que, quase como exceção, são utilizados para ambos os sexos. A
magistratura do Rio Grande Sul, já teve um juiz com nome de Noeli. Mas não é o
comum do que costuma acontecer. Rui, Jorge, Luiz, Ricardo, são nomes que, se
poderia dizer por sua própria natureza, são nomes masculinos.
No ponto não pode haver dúvida: NATALY é nome
eminente feminino.
Enfim, a condição de transgênero, por si só, já
evidencia que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor,
que a sua real condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se
apresenta socialmente.
Por tais razões, estou dando provimento ao recurso
para julgar integralmente procedente o pedido inicial.
ANTE O EXPOSTO, dou provimento ao apelo para
determinar a alteração do registro civil da autora para que passe a constar
“Feminino” como designativo de gênero em seu registro civil de nascimento.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (REVISOR)
Acompanho o em. relator, com um acréscimo.
DES. RICARDO MOREIRA LINS PASTL
Acompanho o eminente Relator, também dando
provimento ao recurso.
No caso, aponta o laudo psicológico produzido pelo
DMJ que a parte autora desde os cinco anos de idade começou a dar sinais de
identidade feminina e que aos quatorze anos começou a tomar hormônios
femininos, apresentando-se desde então como Nataly. Consta que aos dezenove
anos de idade foi expulso de casa pela sua genitora, que não aceitava a sua
condição de transexual. Faz referencia ainda à notícia de que alguns médicos
não recomendam a cirurgia de transgenitalização, panorama que levou o perito a
concluir que “a periciada possui uma identidade de gênero feminino desde tenra
infância, tendo vivenciado muito sofrimento por conta disso e ainda sofrendo
discriminação em função de sua identidade civil masculina. Sua vida relacional
é estável, tendo constituído família, assumindo as cuidados de uma enteada como
filha e sendo tratada por esta como mãe. Também tem uma profissão com a qual
tem se realizado. Deseja muito poder assumir oficialmente seu nome de Nataly,
pelo qual se reconhece desde a pré-adolescência. Neste sentido, este parecer
psicológico é favorável à mudança de nome pela periciada, assim como de seu
sexo jurídico” (fls. 83/84).
Aqui, como dito pelo colega relator, o juízo
singular autorizou a troca do nome, porquanto comprovada a identidade de gênero
diferente daquela designada ao nascimento, de modo que a consequência lógica é
também a alteração do sexo jurídico no registro civil, respeitosamente.
Nesse sentido, destaco que o ilustre Des. Edson
Aguiar de Vasconcelos, integrante da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, em processo que trava de situação análoga, especificamente
acerca da desnecessidade de cirurgia de transgenitalização à modificação do
prenome e sexo, realçou, com absoluta propriedade, que, “em que pese esta busca
da felicidade pela via da técnica cirúrgica, forçoso reconhecer que a cirurgia
é apenas um paliativo quanto a aparente correção de ‘defeito’ de pessoa que
nasceu homem num corpo de mulher, ou que nasceu mulher num corpo de homem. Como
se vê, a transgenitalização não é, por si só, capaz de habilitar o transexual
às condições reais do sexo e da identidade do gênero a final desejadas, pois a
identificação sexual é um estado mental que preexiste à nova forma física
resultante da cirurgia. Não permitir a mudança de sexo no registro civil com
base em condicionante meramente cirúrgica equivale a prender nas amarras de uma
lógica formal a liberdade que clama o transexual de ser e de realizar-se como
ser humano, constituindo mais um obstáculo a que o indivíduo venha a ser o que
sempre foi, sendo ainda uma resistência ao convite ético feito pelo poeta grego
Píndaro: ‘torna-te o que já és, aprendendo com a experiência da vida’”
(Apelação Cível n.º 0013986-23.2013.8.19.0208).
Peço licença para fazer minhas essas ponderações,
permitindo-me ainda anotar que a Procuradoria-Geral da República, ainda no ano
de 2009, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade objetivando a
interpretação conforme a Constituição do art. 58 da Lei n.º 6.015/73, na
redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 9.708/98, para que se reconheça o
direito dos transexuais, que assim o desejarem, à substituição de prenome e
sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização
(feito ainda pendente de julgamento), sustentando o pedido na existência do
direito fundamental à identidade de gênero, inferido dos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da igualdade
(art. 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (art. 3º, IV), da
liberdade (art. 5º, caput), e da privacidade (art. 5º, X).
Por tais razões, também dou provimento à apelação.
DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Apelação Cível nº
70057414971, Comarca de Porto Alegre: " DERAM PROVIMENTO,
UNANIMIDADE."
Julgador(a) de 1º Grau: ANTONIO C A NASCIMENTO E
SILVA
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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