A polêmica cassação de médico após morte de bebê em parto domiciliar
- 16 dezembro 2016
Ainda nem era dia
na China quando Ricardo Jones, de 57 anos, teve o sono interrompido por
notificações no aplicativo de mensagens no celular.
Era o filho
mais velho avisando que a decisão do Conselho Regional de Medicina do
Rio Grande do Sul (Cremers), que cassara o registro médico de Jones
quatro meses antes, tinha sido publicada num jornal de grande circulação
naquela terça-feira, 22 de novembro de 2016.
A publicação
concretizava a cassação, tornando público que o obstetra - com mais de
30 anos de carreira - estava impedido de exercer a profissão por
"imperícia, imprudência e negligência".
"Comete
delito ético o médico que atender parto em local e condições
inadequadas colocando em risco a saúde e a vida da parturiente e do
concepto, por ação ou omissão", diz a nota, fazendo alusão ao artigo 1º
do Código de Ética Médica.
A decisão também considerou que Jones
infringiu o artigo 87, por não elaborar prontuário do paciente no caso
julgado - um parto domiciliar em 2010 na capital gaúcha, em que o bebê
morreu 24 horas após o nascimento.
Prevendo a repercussão, Jones
foi até o corredor do hotel, onde o sinal fraco da internet chinesa
melhorava um pouco, e redigiu sua resposta.
"A punição visa
atingir não apenas o profissional, mas suas ideias e sua luta contra a
violência obstétrica e o abuso de cesarianas em nosso meio", escreveu.
Em
poucas horas, a publicação alcançou mais de 5 mil reações e 1,5 mil
compartilhamentos no Facebook, e motivou ativistas do parto natural a
manifestar apoio na rede social por meio da hashtag #euapoioricjones.
Publicada,
a decisão do Cremers colocou em evidência não apenas a carreira do
médico, reconhecido defesor do parto normal, mas o embate entre
diferentes concepções de obstetrícia, o ramo da Medicina que cuida da
gravidez, do parto e da saúde feminina no pós-parto.
Processo de cassação
Desde
a sentença, Jones evita ir ao consultório. Falou com a BBC Brasil no
café de um shopping e tem usado como escritório um sítio da família na
zona sul de Porto Alegre, onde planeja construir uma ecovila.
Em
três décadas de trabalho, o obstetra anotou mais de 2 mil partos numa
caderneta que o acompanha desde o Natal de 1985, quando fez o primeiro
plantão obstétrico num hospital de Porto Alegre. A última anotação data
de 29 de junho de 2016 - ironicamente, uma cesariana.
Nos últimos meses, ele vinha planejando um
afastamento gradual das atividades clínicas e pretendia se dedicar mais a
dar cursos e escrever livros - já tem dois publicados, o mais recente
se chama Entre as Orelhas - Histórias de Parto (Ideias, 2012).
A
ida à China era parte do projeto. "Só neste ano, estive na Inglaterra,
fui duas vezes à China e ainda vou aos EUA. Fui convidado para ser
professor em escolas de parteiras na China, meus livros estão sendo
traduzidos para mandarim e inglês. Acabaram 34 anos de bullying. Agora,
vou continuar na minha atividade com uma liberdade que eu nunca tive",
projeta.
Apesar da aparente empolgação com novos projetos, Ric
Jones, como tornou-se conhecido, não está indiferente à cassação do
registro profissional, que é irreversível nas instâncias médicas.
Ele
se articula para recorrer à Justiça comum e pretende denunciar a ação
do Conselho em órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos. Diz
considerar a medida injusta e desproporcional. "É um erro achar que é
contra a minha pessoa, é contra a causa."
O coordenador das
Câmaras Técnicas do Cremers, Jefferson Piva, é enfático ao afirmar o
contrário: "Não estamos condenando o parto domiciliar e, sim, um ato
médico que não seguiu os procedimentos necessários".
Os
conselheiros entenderam que, no caso julgado, a realização do parto fora
do ambiente hospitalar e a remoção do recém-nascido sem ambulância
contribuíram decisivamente para a morte do bebê.
Jones contesta o juízo do Cremers e sustenta que houve problemas no manejo do caso quando a criança já estava hospitalizada.
"A
mãe entrou espontaneamente em trabalho de parto e a criança nasceu bem,
mas apresentou gemência (gemer por problemas respiratórios) que se
prolongou, por isso foi levada ao hospital. O bebê foi internado na UTI,
ficou três horas e meia em observação, e somente após quatro horas e
meia foi medicado corretamente para suspeita de infecção congênita por
streptococcus e morreu 24 horas depois", alega.
Sobre a falta de
prontuário, Jones afirma que foi realizado e entregue, mas não foi
aceito porque estava sem a assinatura. "Não consta lugar para assinatura
no modelo usado pelo hospital", justifica.
Reincidência pesou na decisão
A
cassação de um registro médico, pena máxima da categoria, é rara. No
Rio Grande do Sul, há apenas outros dois casos nos últimos dez anos,
sendo um referente a um implante de prótese peniana sem necessidade e
outro por manter uma clínica de aborto.
Cada denúncia passa por
uma câmara de sindicância. O médico envolvido apresenta sua defesa à
relatoria, uma comissão formada por sete conselheiros analisa os
argumentos e decide se instaura o processo ou se encaminha uma
diligência interna, que seria uma espécie de conciliação.
No caso
de abertura de processo, o rito é semelhante ao do Judiciário: um
conselheiro conduz como instrutor, testemunhas, advogados e as partes
são ouvidas, documentos são apresentados, e há o julgamento.
As
penas são progressivas, desde medidas administrativas até advertência
pública, suspensão e, por fim, cancelamento do registro. No caso da
última, é obrigatório que o plenário do Conselho endosse a decisão. Em
caso positivo, ainda é necessário que o plenário do Conselho Federal de
Medicina também se manifeste a favor. Foi o que aconteceu no caso Ric
Jones.
"Ele não é primário e há outros processos que seguem em
andamento no Conselho", complementa Jefferson Piva, sem detalhar outros
casos investigados, por serem sigilosos.
Jones afirma que só teve
duas complicações graves nos partos que realizou: o parto domiciliar que
resultou na cassação e um caso anterior, em 2000, quando morreram mãe e
filho após a realização do parto numa reconhecida maternidade
porto-alegrense.
A paciente, que acabou tendo de passar por uma
cesariana, teve embolia aguda por líquido amniótico, uma complicação
rara que ocorre quando o líquido amniótico penetra na corrente sanguínea
da mãe.
Dados da Amniotic Fluid Embolism Foundation,
fundação estadunidense especializada no tema, indicam que a incidência é
de um entre 15 mil partos na América do Norte e a prevenção é
impossível, pois as causas ainda não são totalmente compreendidas.
O
médico alegou que a embolia estava controlada, mas a paciente teve
varicela, contraída na UTI do hospital - a morte ocorreu três semanas
após o parto. O bebê ainda resistiu por mais 14 dias.
O Cremers
havia decidido pela suspensão de Jones por 30 dias, por entender que ele
prolongou a decisão pela cirurgia, mas o CFM atenuou a pena para uma
advertência privada.
Ainda assim, Jones foi condenado na Justiça
comum por dois homicídios culposos (sem intenção, da mãe e do bebê), com
pena de dois anos e quatro meses de detenção, convertida em prestação
de serviços comunitários.
"Depois disso, eu sabia que meus partos teriam de ser sempre perfeitos", diz Jones.
Controvérsia
Dados
sobre a segurança de se realizar um parto em casa ainda são
controversos na bibliografia científica e mais particularmente no
contexto brasileiro, onde 98% dos partos ocorrem em hospitais, sendo que
56% são cesarianas - o país é líder mundial nesse procedimento, segundo
a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ao apresentar um relatório
sobre o tema em 2015, a diretora do Departamento de Saúde e Pesquisas
da OMS, Marleen Temmerman, afirmou que se instalou no Brasil "uma
verdadeira cultura da cesariana".
Diretor de Defesa e Valorização Profissional da
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(Febrasgo), o médico Juvenal Borriello relativiza a "epidemia de
cesarianas" criticada pela OMS.
"Não concordamos com o alto
número de cesarianas feitas no Brasil, mas também não concordamos que
esse índice seja atribuído única e exclusivamente ao médico. Há vários
fatores, como a falta de disponibilidade do ambiente hospitalar e também
a opção da própria gestante."
A Febrasgo tem um posicionamento
bem definido no sentido de não recomendar partos domiciliares.
"Eticamente e cientificamente entendemos que o parto em casa não oferece
todo o arsenal de segurança que um hospital oferece. Mesmo em casos de
baixo risco, se há uma emergência, o sistema de saúde brasileiro nem
sempre proporciona socorro rápido e que os pacientes cheguem em boas
condições a um hospital", explica.
O Conselho Federal de Medicina
(CFM) não proíbe, mas também não aconselha a realização de partos fora
de hospitais. Em uma publicação de 2012, a entidade informa que o
plenário do Conselho decidiu recomendar a realização de partos em
ambiente hospitalar "de forma preferencial".
Entre os estudos que embasam a recomendação, o CFM cita um artigo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology
que encontrou uma taxa de morte neonatal de 0,2% (32 mortes em 16.500
nascimentos) em partos domiciliares comparada a 0,09% (32 em 33.302
nascimentos) em partos hospitalares.
Ou seja, o número de mortes
de crianças nos procedimentos realizados em casa seria duas vezes maior
do que os que ocorrem em hospitais.
Na contramão, o Instituto
Nacional para Saúde e Excelência em Atendimento, órgão consultivo do
sistema público de saúde britânico disse recentemente que pelo menos 45%
das mulheres teriam risco muito baixo de complicações e poderiam ter
seus filhos fora de hospitais.
Entre mulheres que davam à luz ao primeiro filho, o
número de partos sem intervenções médicas foi maior naqueles realizados
em casa e em centros de parteiras do que em hospitais, segundo o órgão.
Entre
as razões para isso, pode estar, de um lado, a sensação de conforto
promovida no ambiente familiar e com parteiras conhecidas, e de outro, a
ênfase de alguns médicos em optar por intervenções clínicas.
Cenário brasileiro
Ricardo
Jones se considera solitário por defender o parto natural no meio
médico brasileiro desde a faculdade de Medicina, na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Tudo começou com o nascimento do
primeiro filho, Lucas, hoje com 34 anos. "Tive oportunidade de assistir
ao parto porque estava no terceiro ano de Medicina, ninguém permitia que
o pai ficasse na sala de parto naquela época. Presenciei todas as
violências obstétricas possíveis, a pediatra arrancou o bebê dos braços
da minha mulher, mas foi ali que decidi ser obstetra. Fiquei magnetizado
pela força do nascimento", conta.
Na faculdade, porém, Jones não
encontrava interlocutores, nem entre os professores nem entre os
colegas. Um diálogo no corredor de uma das mais tradicionais escolas de
Medicina foi marcante.
Jones mostrou a um colega que estava lendo
um livro sobre o parto de cócoras, de Moysés Paciornik, e ouviu: "Tu só
não consegues descer no meu conceito, porque de onde tu estás é difícil
cair."
Apelidos pejorativos o acompanharam por toda a carreira,
apontavam-no como "médico metido a parteiro" ou "aquele que atende de
cocar".
Outros que fazem coro com Jones têm sofrido sanções
em outras partes do Brasil, como a obstetra Patrícia Huguet, que teve
suspensão preventiva decretada pelo Conselho Regional de Medicina de São
Paulo e está impedida de exercer a profissão por seis meses.
Conselhos
regionais também atuam para desaconselhar partos domiciliares por meio
de resoluções, como no Rio de Janeiro, que publicou norma em 2012
proibindo médicos de atuarem em partos em casa.
"Um adulto assume
o próprio risco, mas no caso do parto a autonomia materna tem um limite
porque há outro interessado que não responde por si, o bebê. Não se
justifica não fazer parto em hospital no Brasil, que tem uma rede
hospitalar altamente confiável", argumenta o coordenador do Cremers,
Jefferson Piva, que é pediatra.
O argumento vai diretamente contra
a principal bandeira defendida por ativistas, como a doula Maria de
Lourdes da Silva Teixeira, autora do livro A Doula no Parto (Editora Ground, 2003). "O lugar e a forma como vai se dar o parto é um direito de escolha da mulher", sustenta.
Não
há um banco de dados que permita quantificar o crescimento da procura
por doulas nem precisar o número de mulheres que se dedicam à atividade
no país, mas pela atuação na área há cerca de três décadas, Teixeira
observa que jovens mães têm se interessado mais pelo tema nos últimos
anos.
O acesso à informação propiciado pela internet, inclusive
com cursos online para formação de doulas, é uma das razões apontadas
pela ativista.
Mesmo o acirramento do embate entre doulas e
profissionais de saúde, manifesto em resoluções e legislações que tentam
barrar ou regulamentar a atuação das acompanhantes de parto, aponta
para um fortalecimento da atividade, embora com realidades diferentes em
cada região.
Lançada em 2011 pelo Ministério da Saúde, a Rede
Cegonha prevê a capacitação e qualificação de doulas e parteiras
tradicionais. Uma lei estadual em Santa Catarina, aprovada este ano,
assegura a presença das doulas durante o parto e pós-parto imediato em
maternidades e hospitais da rede pública e privada.
Na Câmara
Municipal de Porto Alegre, por outro lado, um projeto de lei que inclui
emenda restringindo a presença das acompanhantes de parto está em
discussão.
Precursor na formação de doulas no Brasil, quando
trouxe, em 2002, uma acompanhante de parto dos Estados Unidos para dar o
primeiro curso, Ricardo Jones posiciona a cassação do seu registro
médico como mais um episódio da controvérsia em torno do direito de
escolha das mulheres sobre como, onde e quem vai lhes ajudar a parir.
"A
medicina quer controlar o corpo da mulher. Sou a pessoa mais vocal da
causa da humanização dos partos no Brasil, o que mais fala, o que mais
viaja. Imagina o que é falar de parto natural no país das cesarianas?",
pontua.
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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