COLUNA
A última liberdade
Dignidade humana
deve ser preservada. Do direito à vida não decorre o dever de viver a qualquer
preço
O reverendo Desmond Tutu, arcebispo emérito da Cidade do Cabo, Prêmio
Nobel da Paz, braço direito de Mandela na luta contra o apartheid na África do
Sul, é um ícone mundial da defesa de direitos humanos. Recentemente, Tutu
chamou sua filha para conversar sobre um assunto delicado, o fim de sua vida.
Anunciou que gostaria, ele mesmo, de escolher quando sua vida se encerraria e
em que condições, recusando o prolongamento artificial das funções vitais.
Fez, então, por escrito, a defesa do direito à morte com dignidade,
contrariando aqueles médicos que acreditam ser o seu dever prolongar a vida do
paciente em quaisquer circunstâncias. “Tive o privilégio de dedicar minha vida
à defesa da dignidade dos que estão vivos. Agora quero dedicar minhas energias
à luta pela dignidade dos que estão morrendo”. E concluiu afirmando que
reivindica para si o direito à morte assistida.
Dois anos antes, o suíço Hans Küng, um dos mais eminentes teólogos
católicos, publicara um livro intitulado “Morte feliz”, em que declarava que, chegado
o momento, não abrirá mão do direito de decidir serenamente, sob sua inteira
responsabilidade, sobre a hora e o modo de sua morte, uma decorrência do
princípio do livre-arbítrio. A morte faz parte da vida e, nesse momento
extremo, mais do que nunca a liberdade e a dignidade humana devem ser
preservadas. Do direito à vida não decorre o dever de viver a qualquer preço.
Hans Küng é membro de uma associação suíça sugestivamente chamada Exit,
que ajuda as pessoas que sofrem de uma doença incurável, expostas à degradação
física e mental, dolorosa ou incapacitante, a morrer como desejam. Para ele,
assim como se ajuda alguém a viver, ajudá-lo a morrer, quando é este o seu
desejo, é o ponto extremo da compaixão. O que não se choca com suas convicções
religiosas, uma vez que ele se recusa a imputar ao Deus em quem acredita a
criação de um inferno em vida.
Desmond Tutu e Hans Küng, dois homens profundamente religiosos,
fundamentam suas escolhas no respeito à dignidade humana e na afirmação da
liberdade. Esse direito à autonomia interroga a sociedade e coloca um problema
eminentemente político. Os imensos progressos da tecnologia aplicados à
medicina, ao lado dos indiscutíveis benefícios que trazem, vêm gerando
situações de prolongamento artificial da sobrevida que, apagando as fronteiras
entre a vida e a morte, fazem com que sejamos obrigados a temer não o dia de
nossa morte, e sim os dias de uma morte em vida, um calvário para si mesmo e
para os que acompanham a agonia.
O debate sobre o fim da vida está aberto e faz seu caminho nas
sociedades democráticas que cada vez mais reconhecem o direito dos indivíduos
de viver com dignidade até o fim, de escrever sua história até o ponto final.
Nada é mais cruel e injusto do que, em nome de um princípio religioso ou de uma
ética médica de outros tempos, impor a um ser humano, já fragilizado e contra
sua vontade, dores atrozes, a imobilidade que aprisiona dentro do próprio corpo
ou a convivência insuportável com a certeza de que sua mente e, em
consequência, sua capacidade de escolha estão se apagando.
O que está em jogo não é só a dignidade de cada um, é a essência mesma
de nossa humanidade. Feliz de quem consegue chegar ao fim da vida ainda na
posse de suas faculdades mentais, com suas lembranças e afetos intactos,
cercado pelos seus entes queridos.
O primeiro passo na direção de um maior respeito à demanda dos pacientes
é a atenção cada vez maior que vem sendo dada aos “cuidados paliativo”, à luta
contra a dor e o sofrimento percebidos até pouco tempo atrás como uma fatalidade.
Médicos que sempre pensaram que sua missão era garantir a todo custo a
sobrevivência dos pacientes vão aprendendo no contato com eles a importância de
poderem ser tratados em casa ou atendidos por equipes treinadas para reduzir a
dor e o sofrimento, capazes ainda de fazer as pequenas escolhas cotidianas que
exprimem seu gosto pela vida.
Ajudar o paciente a lidar com a angústia da morte implica em ouvi-lo. E
ouvi-lo inclui a possibilidade de que ele peça ajuda para morrer. Ou para
continuar vivendo até o fim.
Os cuidados paliativos exprimem escuta e respeito ao desejo dos
pacientes mas não respondem à questão de fundo: o poder de decisão não pode
mais estar nos médicos, por melhor intencionados que sejam, e sim na vontade
soberana do paciente. A morte com dignidade tem que entrar na pauta das
liberdades que se ampliam e são reconhecidas como direitos garantidos em lei.
Morrer dignamente é a ultima liberdade.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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