06/11/2016 05h00 - Atualizado em
06/11/2016 10h53
Ministro Marco Aurélio liberou voto e caberá a Cármen Lúcia marcar data.
MP gaúcho quer derrubar lei que exclui punição em ritual de origem africana.
Renan RamalhoDo G1, em Brasília
Após a polêmica decisão que
condenou a realização das vaquejadas no país, o Supremo Tribunal Federal (STF) está pronto para julgar uma outra ação que promete colocar em pólos opostos defensores dos animais e de tradições culturais brasileiras.
Na semana passada, o ministro
Marco Aurélio Mello liberou para decisão do plenário um processo que discute o sacrifício de animais em rituais religiosos de origem africana.
Caberá agora à presidente da Corte, Cármen Lúcia, marcar uma data para o julgamento, ainda sem previsão para ocorrer.
Na ação, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) busca derrubar trecho de uma lei gaúcha que livra de punição por maus tratos a animais cultos e liturgias das religiões de matriz africana que praticam sacrifícios, como o candomblé.
O que dizem a Constituição e as leis sobre maus tratos a animais?
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Constituição
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I).
“O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Art. 215, § 1º)
“Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (art. 225, § 1º, VII)
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Lei Federal
“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal”
“Não é crime o abate de animal, quando realizado em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente”.
(arts. 32 e 37 da Lei 9.605/1998).
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Lei estadual do Rio Grande do Sul
“É vedado ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; [...] enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; [...] Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana” (art. 2º da Lei 11.915/ 2003, atualizada pela Lei 12.131/2004)
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A lei foi aprovada em 2004 pela Assembleia Legislativa do estado com 32 votos a favor dois contrários. Na época, o autor da proposta, deputado Edson Portilho (PT-RS), argumentou que vários praticantes e sacerdotes estavam sendo processados após os cultos.
O Ministério Público tentou derrubar a exceção dada às religiões africanas junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), mas teve o pedido negado. O órgão, então, recorreu ao STF em 2006, para tentar novamente derrubar esse trecho da lei, que permanece em vigor.
A decisão a ser tomada pela Corte valerá apenas para o Rio Grande do Sul, mas como será proferida pela mais alta Corte do país, poderá criar um entendimento que influencie outros tribunais de instâncias inferiores.
No Brasil, é considerado crime, com pena de prisão de três meses a um ano, os maus tratos a animais, que podem consistir em atos de abuso, como ferir ou mutilar espécies silvestres, domésticas, nativas ou exóticas.
No capítulo sobre o meio ambiente, a Constituição também prevê a proteção da fauna, proibindo práticas "que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".
A grande discussão a ser travada no STF é saber se a liberdade de culto, o caráter laico do Estado e a proteção a manifestações culturais deve prevalecer, nesses casos, sobre a proibição de maus tratos e a proteção do meio ambiente.
No processo que será julgado, diversos órgãos e entidades se manifestaram sobre o assunto. A controvérsia teve oposição dentro do próprio Ministério Público. O pedido do MP-RS foi contestado até mesmo pela Procuradoria Geral da República, órgão de cúpula da instituição.
Veja abaixo, o que argumentaram, resumidamente, cada um dos envolvidos no caso:
O que diz o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS)
Em seu pedido, o Ministério Público do Rio Grande do Sul argumentou que somente a União poderia excluir determinada conduta de punição penal. O órgão sustenta que a própria lei federal que penaliza os maus-tratos a animais, não cria exceção para os rituais religiosos.
O MP reconhece a importância do sacrifício nos cultos, dizendo que impedir a prática implicaria na “perda da própria identidade de sua expressão cultural”. Entretanto, argumenta que, em cada caso, cabe ao Judiciário avaliar se o ritual ultrapassou os limites.
Provocação de sofrimento exagerado aos animais, entre outras, são circunstâncias que deslegitimam a expressão cultural"
Roberto Bandeira Pereira,
ex-procurador-geral de Justiça
do Rio Grande do Sul
Outro argumento do MPE-RS é que a lei estadual contraria a igualdade, ao beneficiar apenas as religiões africanas, lembrando que judeus e muçulmanos também sacrificam animais. “Se é verdade que tais religiões têm um papel significativo na cultura brasileira, não se pode esquecer que privilegiamentos específicos são incompatíveis com a natureza laica do Estado”.
Bastaria um único praticante de religião que reclame o sacrifício de animais para que a liberdade de culto, essencial a uma sociedade que se pretenda democrática e pluralista, já atue em seu benefício"
Araken de Assis,
desembargador e relator do caso
no TJ-RS
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o pedido do Ministério Público estadual foi rejeitado. Ao julgar o caso, a Corte entendeu que o valor cultural do sacrifício prevalece sobre a proteção ao meio ambiente.
“Bastaria, a meu ver, um único praticante de religião que reclame o sacrifício de animais para que a liberdade de culto, essencial a uma sociedade que se pretenda democrática e pluralista, já atue em seu benefício”, escreveu em seu voto o desembargador Araken de Assis, relator do processo no TJ-RS.
Não há como pressupor tenha o sacrifício religioso requintes de crueldade e que seja obsequiosa a extensiva matança comercial"
Rodrigo Janot,
procurador-geral da República
Em parecer sobre o caso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, manifestou posição contrária ao MP-RS. Afirmou que a redação da lei gaúcha deve ser interpretada de forma a abarcar todas as religiões, não havendo privilégio aos credos africanos.
Argumentou ainda que a eliminação do texto poderia “deixar sob suspeita” a realização de cultos com sacrifícios, independentemente da religião.
Por fim, apontou que uma eventual restrição aos rituais não traria “ganho significativo” para o meio ambiente, levando-se em conta que os mesmos animais já são sacrificados para consumo humano em matadouros.
A declaração de sua inconstitucionalidade renovaria as ações belicosas em detrimento do exercício livre da crença e de suas liturgias"
Helena Maria Silva Coelho,
ex-procuradora-geral
do Rio Grande do Sul
A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul rebateu, em seu parecer, que o estado tenha invadido competência da União. Esclareceu que a lei estadual apenas impõe punições administrativas – como aplicação de multas pelo governo gaúcho – e não criminais – como a prisão, que só poderiam ser definidas ou excetuadas pelo Congresso Nacional.
“A declaração de sua inconstitucionalidade renovaria as ações belicosas em detrimento do exercício livre da crença e de suas liturgias. Assim, restaria não atingida uma das funções do direito que é o de promover a paz social”, diz o parecer.
É uma tradição africana, e portanto, deve-se adaptar às regras brasileiras"
Movimento Gaúcho de Defesa Animal
Em parecer no processo, o Movimento Gaúcho de Defesa Animal (MGDA) defendeu a punição de praticantes de sacrifícios. Além da crueldade, apontou que o ritual, “além de extremamente macabro”, pode prejudicar a saúde das pessoas, considerando que as vísceras são consumidas após a imolação.
Além disso, disse que as tradições de origem africana devem se submeter às regras brasileiras, em atenção à “soberania” do país.“É uma tradição africana, e portanto, deve-se adaptar às regras brasileiras. É como se a comunidade espanhola existente no país resolvesse realizar touradas”, argumentou.
As mesmas normas municipais conviviam com a matança de animais praticada pelos judeus – uma regra da dieta alimentar judaica – sem que tais matanças fossem condenadas, pelo que a hostilidade em relação à Church of the Lukumi configurava indisfarçável discriminação"
Cedrab e outras
Em parecer dentro do processo, diversas entidades ligadas às religiões africanas, sediadas em Porto Alegre e São Paulo, manifestaram contrariedade à ação do MP. Além da defesa da liberdade religiosa e o caráter laico do Estado, garantidas também por acordos internacionais, destacou julgamento semelhante ocorrido em 1993 nos Estados Unidos.
Na época, a Suprema Corte americana derrubou a proibição imposta pela comunidade de Hialeah, na Flórida, sobre sacrifícios de uma igreja pertencente à santeria, de origem cubana.
“As mesmas normas municipais conviviam com a matança de animais praticada pelos judeus – uma regra da dieta alimentar judaica – sem que tais matanças fossem condenadas, pelo que a hostilidade em relação à Church of the Lukumi configurava indisfarçável discriminação”, diz o parecer.
Assinaram a peça a Organização de Mulheres Negras (Maria Mulher), a Congregação em Defesa das Religiões Afrobrasileiras (Cedrab), a União dos Negros pela Igualdade (Uninegro), o Ilê Axé Yemonja Omi-olodo e C.E.U Cacique Tupinambá e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).
“Ritos exóticos sem significação cultural, abate de animais em vias de extinção, utilização de meio desnecessário à atividade, provocação de sofrimento exagerado aos animais, entre outras, são circunstâncias que deslegitimam a expressão cultural, caracterizando infração até mesmo penal”, diz a peça.
O que disse o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS)
O que disse a Procuradoria Geral da República (PGR)
“A par das imolações rituais, seguirão os abates de forma extensiva dos mesmos animais, já agora como fonte de proteína na cadeira alimentar humana. Não há como pressupor tenha o sacrifício religioso requintes de crueldade e que seja obsequiosa a extensiva matança comercial”, escreveu na ação.
O que disse a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (AL-RS)
Em relação ao suposto privilégio das religiões africanas, a Assembleia explicou que a lei tratou apenas das religiões africanas porque no estado não existem outras que sacrifiquem animais. Informou ainda, que, antes da lei, diversos praticantes e sacerdotes de religiões africanas estavam sendo processados por maus tratos a animais.
O que diz o Movimento Gaúcho de Defesa Animal (MGDA)
O que disseram entidades que representam religiões africanas
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito