Neurologista premiada afirma que médicos e doentes reagem com descrença
quando corpo reage fisicamente às emoções.
Neurologista Suzanne O'Sullivan se interessou pelas doenças psicossomáticas quando verificou que não havia uma causa física para os sintomas de vários dos seus pacientes (Foto: Suzanne O'Sullivan)
A urologista irlandesa Suzanne
O'Sullivan conheceu Yvonne assim que se formou em medicina. A paciente estava
cega, e não havia uma causa física para o problema - era uma manifestação do
estresse emocional.
Mas o que faz com que nosso corpo
manifeste os sintomas de uma doença que não temos?
E mais: por que mascaramos com
dor, fraqueza ou paralisia o que na verdade é emoção?
Yvonne, de 40 anos, tinha entrado
no hospital no dia anterior, depois que um colega de trabalho acertara um
produto de limpeza nos seus olhos.
Sucessivas lavagens não aliviaram
a dor e a irritação dos olhos, nem lhe devolveram a visão.
Os exames de Yvonne nos seis
meses seguintes, no entanto, tiveram o mesmo resultado: a cegueira não tinha
nenhuma causa física.
Os médicos concluíram então que a
deficiência visual dela era de origem psicossomática. Ou seja: era a
manifestação física de estresse emocional.
Livro premiado
Yvonne foi uma das primeiras de
uma longa relação de pacientes com problemas psicossomáticos que a O'Sullivan
viu em 20 anos de carreira.
A história dela e a de outros
seis pacientes estão no livro It's All in Your Head: True Stories of Imaginary
Illness ("Está tudo na sua cabeça: Histórias reais de doenças
imaginárias", em tradução livre), escrito pela médica em 2015.
A obra ganhou no ano passado o
prestigiado prêmio literário britânico Wellcome Book Prize.
A neurologista falou sobre o
livro na 11ª edição do Hay Festival, um dos eventos literários anuais mais
importantes do mundo hispânico, que acontece até o próximo dia 29 na cidade de
Cartagena, na Colômbia.
Os outros pacientes, que chegaram
ao seu consultório frustrados após procurarem diversos especialistas que não
conseguiram chegar a um diagnóstico, apresentavam sintomas tão graves quanto os
de Yvonne: alguns estavam em cadeiras de rodas, outros tinham inflamações, se
queixavam de dores, paralisia, desmaios e convulsões.
Doenças que todo mundo pode ter
Esses pacientes tinham algo em
comum: a falta de uma explicação médica para seus sintomas. E a grande maioria
se negava a aceitar que a doença era de origem psicológica.
Mas não foi por acaso que eles
procuraram a O'Sullivan.
É uma situação que se repete em
quase todos os consultórios, disse a especialista à BBC Mundo, o serviço em
espanhol da BBC.
"Dedico grande parte do meu
tempo a pacientes com convulsões e, em geral, um terço das pessoas que atendo
sofre de convulsões de origem psicológica. Mas, de acordo com estudos, em
outras especialidades médicas um terço dos pacientes também apresenta sintomas
de ordem psicológica", disse O'Sullivan.
Estas doenças não são um mal
típico da sociedade contemporânea - embora a internet ajude com a grande
quantidade de informação disponível sobre enfermidades e seus sintomas - nem
fazem distinção entre ricos e pobres.
"Isso acontece em todo o
mundo", afirma a neurologista.
Ela lembrou que um estudo da
Organização Mundial da Saúde (OMS), feito há alguns anos, demonstrou que a
incidência de doenças cujos "sintomas carecem de explicação médica" é
praticamente idêntica em quase todos os países, independentemente de serem
desenvolvidos ou em desenvolvimento e do acesso da população aos serviços de
saúde.
Sintomas reais
Foi exatamente essa proporção
alarmante que fez a neurologista se interessar pelo assunto e, mais tarde,
contar sua experiência no livro.
A obra é um relato humano e cheio
de compaixão das histórias de alguns dos seus pacientes e das dificuldades da
neurologista de trabalhar nessa área da medicina, estigmatizada pela sociedade.
"Nosso corpo produz o tempo todo
sintomas físicos em resposta a emoções. Muita gente fica com as mãos trêmulas
ao fazer uma apresentação em público, outras pessoas sentem o coração disparar
se estão ansiosas e há ainda as que ficam coradas quando sentem vergonha",
diz O'Sullivan.
"É algo que acontece com
todos nós. Mas eu não poderia dizer por que em alguns indivíduos esse mecanismo
decide criar uma patologia. O que ocorre é que todos lidamos com o estresse de
formas diferentes", continua.
Também não conseguimos escapar de
tais sintomas da mesma forma que evitamos uma gripe (usando mais agasalhos no
frio) ou uma lesão muscular (aquecendo o corpo antes de correr).
"Não podemos evitar os
sintomas físicos diante de uma situação de estresse", explica a médica.
"O que podemos fazer é
evitar que eles se transformem em algo incapacitante. Você pode reconhecer os
sintomas e alterar a resposta do seu organismo."
Embora não exista uma causa
física, não se deve duvidar que os sintomas são reais para o paciente e que a
consequência deles pode ser uma incapacidade devastadora.
'Você não tem nada'
E é justamente a falta de uma
origem física que historicamente fez a medicina subestimar esse tipo de
distúrbio.
Isso também pode ser visto na
linguagem dos médicos ao falar sobre os males psicossomáticos.
"Se uma pessoa tem um
problema, mas os seus exames são normais, costumamos dizer que ela não tem
nada", afirma O'Sullivan.
"Nós, médicos, somos
treinados para nos concentrarmos nas doenças, para encontrá-las. Quando
examinamos um paciente, estamos preocupados em não deixá-las escapar. Se atendo
alguém e não percebo que a pessoa tem uma doença, isso vai gerar muitas
recriminações", acrescenta.
A atenção dos médicos está tão
concentrada nas doenças que, quando elas são descartadas, seu trabalho é dado
por encerrado.
E foi a falta de atenção e
importância dada a esses males que contribuiu para criar um estigma em torno
das doenças psicossomáticas.
Por isso, é muito difícil para o
paciente aceitar o diagnóstico, que geralmente é recebido como se fosse um
insulto.
Um diagnóstico que ninguém quer
ouvir
Mas até que ponto essa não é uma
saída fácil para rotular qualquer doença para a qual a medicina ainda não tem
uma resposta?
Esse é o temor mais comum dos
pacientes, segundo O'Sullivan.
"No entanto, o diagnóstico é
extremamente preciso. Em neurologia é muito fácil fazer medições do sistema
nervoso. Há uma grande diferença entre alguém com uma paralisia ou uma
convulsão psicossomática e alguém com uma doença no cérebro", explica.
"Isso permite que o médico
faça um diagnóstico confiável."
Mas quando há a suspeita de que
uma doença possa ser psicossomática, o processo é outro: "A doença vai se
revelando, trazendo evidências objetivas com o passar do tempo".
Por outro lado, estudos a longo
prazo demostraram que o percentual de diagnósticos equivocados é de apenas 4%.
Terapia nem sempre resolve
A maior parte dos pacientes que
aparece no livro de O'Sullivan foi encaminhada ao seu consultório por um
psiquiatra.
No entanto, a neurologista
explica que o tratamento psiquiátrico ou psicológico não é necessariamente
indicado em todos os casos de doenças psicossomáticas.
"O tratamento depende de
cada indivíduo e das causas dos sintomas. Em algumas pessoas, os sintomas
surgem depois de um trauma psicológico. Neste caso, a indicação é de terapia
psicológica ou psiquiátrica", explica.
"Mas, para outros pacientes,
os sintomas não estão relacionados a um trauma específico. Podem estar ligados
à maneira como encaram uma lesão ou uma doença", acrescenta.
"Assim, essas pessoas não
precisam de ajuda psicológica profunda, mas de uma terapia física que as ajudem
a treinar seu corpo para retornar à vida normal ou de terapia cognitiva-comportamental
para superar o medo que sentem de voltar a viver sem a doença."
Construindo uma ponte
Embora o tratamento das doenças
psicossomáticas fuja do campo da neurologia, O'Sullivan não pretende se dedicar
à psiquiatria.
"O problema é que esses pacientes
não vão a um psiquiatra, porque seus sintomas são físicos. Eles procuram o
clínico", diz a neurologista.
"Por isso, precisamos de
médicos que façam uma ponte entre a neurologia e a psiquiatria. Precisamos de
neurologistas que estejam interessados neste problema, já que é a eles que os
pacientes procuram."
Neste sentido, ela afirma que nos
últimos cinco anos houve um crescimento do interesse entre os neurologistas, o
que pode trazer avanços para o conhecimento na área, criar uma aceitação maior
do problema e assim, aos poucos, poderá diminuir o estigma.
A história de Yvonne - a paciente
com cegueira emocional que despertou o interesse de O'Sullivan pelas doenças
psicossomáticas - teve um final feliz.
Depois de seis meses de
tratamento psiquiátrico e terapia familiar, ela finalmente voltou a enxergar.
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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