03/03/2013 08h00
- Atualizado em
03/03/2013 08h00
Transexual pode se descobrir já na primeira infância, dizem especialistas
Criança deve ter avaliação psicológica, e pais precisam dialogar com escola.
Caso de garoto de 6 anos que se vê como menina ganhou destaque.
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A identificação com o sexo oposto e o eventual desejo de uma pessoa em
assumir uma nova identidade de gênero começa geralmente na primeira
infância, entre os 4 e 6 anos de idade, segundo o psicólogo clínico e
psicanalista Rafael Cossi, autor do livro "Corpo em obra", lançado em
2011 após análise de seis biografias de transexuais.
Na última semana, o G1 publicou a história do menino
americano Coy Mathis, de 6 anos, que se identifica como menina e é
aceito pelos pais, mas tem tido problemas na escola ao querer usar o
banheiro feminino. Segundo a família, Coy age assim e brinca com bonecas
desde que tinha 1 ano e meio.
Coy brinca em sua casa na cidade de Fountain, Colorado, na segunda-feira (25) (Foto: Brennan Linsley/AP)
"Nessa idade, ainda não dá para falar se a criança será um transexual
no futuro. Isso porque não se sabe até que ponto ela só está brincando
de se comportar como alguém do outro sexo ou se esse já é um indício de
transexualidade", diz.
Transexual é a pessoa que tem um transtorno mental e de comportamento
sobre sua identidade de gênero, ou seja, nasce biologicamente com
determinado sexo, mas se vê pertencente a outro e cogita fazer
tratamentos hormonais e cirurgia para mudar o corpo físico. Ao contrário
do que já acreditaram psicanalistas no passado, esse não é um caso de
psicose, com alucinações e delírios, defende Cossi.
Brincadeira de criança – ou não
De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, casos como esse sempre existiram, e é importante diferenciar uma simples brincadeira de um comportamento constante.
"É muito comum crianças inverterem os papéis, e quando é algo pontual
não há maiores problemas. Mas, se isso se tornar um hábito frequente,
diário, o menino querer mudar de nome, usar presilha e brinco, é
indicado que os pais e o filho passem por uma avaliação profissional
antes de qualquer coisa, para ver se essa é uma questão familiar que a
criança está tentando resolver dessa forma ou se já é um transtorno de
gênero", afirma.
O médico diz que cada caso precisa de um acompanhamento diferente e
individualizado. Se houver realmente um transtorno, ser violento com a
criança e censurá-la pode piorar muito a situação.
"A escola também não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o que
está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com
as diferenças. E não é porque uma criança vê outra fazendo algo que vai
querer imitá-la, elas não são macaquinhos", destaca Saadeh.
Na opinião do psicólogo Rafael Cossi, os pais têm que acompanhar o que
está acontecendo e não adianta julgar, proibir, punir ou bater.
"Se houvesse uma mentalidade mais aberta e liberal dos pais, a escola
aceitaria melhor. O medo do colégio é de como isso repercute para as
famílias e a possibilidade de perder alunos de uma hora para a outra",
diz.
Cena do filme 'Tomboy', em que Laure (acima) se apresenta como Mikhael (Foto:YouTube/Reprodução)
Segundo Cossi, o preconceito da escola não é apenas contra transexuais e
homossexuais, mas contra deficientes, pessoas com síndromes e tudo o
que foge ao que é caracterizado "normal" – desde uma falta de uniforme
até um cadarço ou cabelo colorido.
"Já os pais costumam dizer que ficam preocupados não tanto com o fato
de o filho ser diferente, mas como será a vida dele em sociedade, se os
colegas vão tirar sarro, pois existe muita discriminação", afirma.
Cossi cita o filme francês "Tomboy",
de 2011, que conta a história da menina Laure, de 10 anos, que muda de
cidade e se apresenta aos novos amigos como Mikhael. Até então, o fato
de ela se vestir e se comportar como um menino não parecia incomodar a
mãe, mas, quando ela fica sabendo que a criança "mudou" de nome, rejeita
a situação.
"O filme é muito bom, é um relato, e não faz questão de dar nenhuma
pista sobre qual vai ser o futuro da menina. Isso fica em aberto",
aponta.
Corpo x gênero
O psiquiatra do HC Alexandre Saadeh explica que há um componente biológico muito importante na questão da identidade de gênero.
"Hoje em dia, sabe-se que existe um cérebro feminino e um masculino,
determinado no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes. E isso
interfere no desenvolvimento cerebral para uma linhagem feminina ou
masculina. A cultura e o ambiente também têm importância, mas a
determinação é biológica", acredita o médico.
Segundo o psicólogo Rafael Cossi, a ideia de dimorfismo corporal entre
homens e mulheres, ou seja, indivíduos da mesma espécie com
características físicas (não sexuais) claramente diferentes, só ganhou
força com os avanços da biologia no século 19.
"Até então, prevalecia a ideia de isomorfismo, em que o corpo feminino
era visto apenas como uma versão do masculino. A vagina era considerada
um pênis invertido e o calor era o diferencial dos corpos, pois a
temperatura do homem era mais alta que a da mulher", afirma.
O psicólogo cita o livro "Inventando o Sexo – Corpo e gênero dos gregos
a Freud", em que o historiador e sexólogo americano Thomas Laqueur
estuda como o corpo foi encarado em vários momentos históricos. Cossi
também destaca que desejo sexual, gênero e identidade sexual são
conceitos bem distintos.
"Uma coisa é o desejo, a orientação, a prática sexual. Outra é o
gênero, como a pessoa se vê, seus gostos e comportamentos – algo
cultural, social, que varia com o tempo. Essa é a ideia do que um homem
ou uma mulher faz, como pensa, como se veste, quais traços o definem. Já
a identidade sexual envolve uma noção de inconsciente, inclui o fator
psíquico, de como o sexo se constrói na mente e reconhece o que é homem e
o que é mulher", esclarece.
É por isso que, segundo o psicólogo, existem transexuais lésbicas ou
gays, ou seja, pessoas que se transformam fisicamente com cirurgia e
hormônios, mas não necessariamente se atraem pelo sexo oposto.
"Nossa mentalidade ainda é muito heterossexual", ressalta.
A transexual Brunna Valin, de 38 anos, se sente como mulher desde os 7 (Foto: Arquivo pessoal)
'Sofria muito por ser diferente'
A transexual Brunna Valin, de 38 anos, conta que desde os 7 anos já sabia muito bem que não gostava de meninas. Aos 11 anos, vieram as brigas no colégio, as surras dos meninos, até que ela deixou a escola na 7ª série do ensino fundamental.
"Eu sofria muito por ser diferente. Com 12 anos, já me apresentava como
Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco.
Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho", lembra.
Em casa, dentro de uma família religiosa, em São José do Rio Preto, no
interior de São Paulo, a transexual também encontrou rejeição. Após
apanhar algumas vezes, deixou os pais aos 14 anos e foi morar com a avó,
depois com uma prima, até ficar sozinha.
"Tenho mais sete irmãos – dois homens e cinco mulheres. Só um irmão me
aceita muito bem. No começo, para eles eu era gay, não entendiam essa
questão de gênero. Meu pai morreu há três anos, ainda não aprovando",
revela.
Brunna mora há dois anos na capital paulista, onde trabalha como
orientadora sócio-educativa no Centro de Referência da Diversidade da
ONG Grupo pela Vida, e visita a família apenas uma ou duas vezes por
ano.
"No fim de 2012, fui lá passar o Ano Novo e contei que vou fazer a
mudança de sexo. Percebi a rejeição no olhar, na fala deles. Ficaram
perguntando se já consegui trocar de nome, se já está no RG. Enfrento
isso todo dia, pois a sociedade nos vê como diferentes", diz.
A transexual, que foi profissional do sexo dos 14 aos 36 anos, voltou a
estudar e agora está prestes a concluir o ensino fundamental. Este ano,
pretende começar o médio e, depois, quer fazer faculdade de psicologia.
No currículo, ela também acumula cursos de formação de costureira,
cabeleireira e cozinheira
.
Além disso, Brunna tem passado por um acompanhamento com vários
profissionais no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, da
Secretaria de Estado da Saúde. A meta é se submeter à cirurgia de
mudança de sexo em 2014 – da qual não tem medo de se arrepender.
"Tomo hormônio desde os 15 anos, e hoje aplico uma injeção mensal à
base de progesterona. Em maio do ano passado, coloquei silicone nos
seios e agora estou tirando os pelos do corpo com laser. Já fiz no rosto
e vou para os braços. Em agosto, também quero pôr prótese nos glúteos,
porque as características femininas estão no corpo inteiro, não é só
fazer uma vagina. Hoje nem gosto de olhar muito, aquilo não é meu", diz.
Dois anos de preparação
Antes de toda cirurgia para mudança de sexo, o Sistema Único de Saúde (SUS) exige que a pessoa, com mais de 21 anos, faça pelo menos dois anos de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, no qual seja diagnosticada com distúrbio de identidade de gênero.
No ambulatório de São Paulo, criado em 2009 e considerado o primeiro do
tipo no país a atender exclusivamente travestis e transexuais, há
atualmente 1.500 pessoas cadastradas. Desse total, 65% (975) se
consideram transexuais – 915 são homens biologicamente que se sentem
como mulheres e 60 são o contrário. Os outros 35% são travestis que
desejam tomar hormônios e mudar a aparência, mas não pretendem fazer a
operação.
"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com psicoterapeuta,
psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza sobre a
cirurgia. Aí fazemos o encaminhamento ao HC. Nesse período, alguns
desistem. Outros vão para a Tailândia, mudam de sexo e se arrependem,
porque lá não existe todo esse protocolo daqui", diz a diretora técnica
substituta do ambulatório, Angela Peres.
Segundo ela, o local conta com uma equipe de 30 profissionais – entre
clínicos gerais, endocrinologista, psiquiatra, psicólogos, enfermeiros,
auxiliares de enfermagem, urologista, ginecologista, proctologista,
assistentes sociais e recepcionistas – e atende brasileiros de vários
estados, como Minas Gerais, Bahia e Acre.
Cirurgia, felicidade ou arrependimento
Em 14 anos, o HC de São Paulo já operou 50 pacientes para mudança de sexo, a maioria homem que se sente mulher, segundo o chefe de urologia pediátrica e disfunção sexual do hospital, Francisco Dénes.
"Nunca vi um caso de alguém que tenha se arrependido. Isso ocorre quando o paciente é mal orientado", ressalta.
Para trocar do sexo masculino para o feminino, em geral são feitos
tratamento hormonal e uma única cirurgia de 4 horas. Já o inverso exige
duas ou mais operações de cerca de 3 horas. Apesar de o primeiro caso,
em que há a desconstrução do pênis e dos testículos para a formação de
uma vagina, parecer mais tranquilo, o urologista diz que pode exigir
retoques, ter mais problemas anatômicos, risco de infecção, abertura dos
pontos ou necrose (morte do tecido).
O pós-operatório envolve o uso de curativos, sonda e pelo menos sete a
dez dias de repouso no hospital. Se não houver problema, a pessoa pode
voltar logo às atividade normais. E nos dois anos seguintes, pelo menos,
deve fazer acompanhamento médico.
Em entrevista ao Fantástico, em janeiro, a transexual Lea T, filha do
ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, disse que se arrepende de ter
feito a troca de sexo em março do ano passado e que não aconselha o
procedimento para ninguém. Ela foi operada na Tailândia e passou um mês e
meio no hospital sentindo dores.
"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia. Fiquei mais
à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para
ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu
ombro é largo. Quando fiquei deitada na cama, entendi que isso tudo é
uma bobeira. É um detalhe importante para a sociedade", disse na época.
Segundo o psicólogo Rafael Cossi, ver a cirurgia como forma de
"normalização" social, para se adequar ao pensamento heterossexual, é
uma das maiores críticas à mudança de sexo. Ele cita o site sexchangeregret.com,
em que um grupo de transexuais arrependidos após a operação contesta a
ideia de que a troca de sexo é o fim para todos os males.
"Muitas pessoas não ficam em paz consigo mesmas, não têm benefícios nem
se veem de uma forma mais tranquila. Algumas desenvolvem problemas que
não tinham antes, como alcoolismo ou dependência de drogas. Isso porque a
cirurgia não altera só a imagem corporal para pertencer a outro sexo,
mas tem várias complicações, pelo fato de o indivíduo passar a
apresentar outro status na vida, um novo nome e ser visto de maneira
diferente pela sociedade", explica.
Mas, por outro lado, tem gente que é muito beneficiada com a cirurgia, diz o psicólogo.
"É caso a caso. Para a (ex-BBB) Ariadna, por exemplo, pelo que ela deu de entrevista, foi algo muito bom", ressalta.
Desde 2008, o SUS já fez 2.451 cirurgias de mudança de sexo de homem
para mulher, único grupo de pacientes atendido atualmente, pelo fato de o
Ministério da Saúde considerar que são casos mais comuns (três homens
para uma mulher), mais bem padronizados e aprovados pelos conselhos de
medicina.
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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