Entrevista com Dra. Raquel Pacheco
Entrevista realizada pela Professora Renata Barbosa de Almeida com a Dra. Raquel Pacheco, Promotora da Vara de Família:
1) Qual a importância da alteração trazida pela Resolução 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina acerca dos usuários das técnicas de reprodução assistida? Quais as pessoas que se pretendeu alcançar?
Não se pode abordar o tema da reprodução assistida sem que antes sejam louvadas as iniciativas do Conselho Federal de Medicina que, cioso da magnitude do assunto, cuidou de tratar das normas éticas a ele relativas. Vivemos atualmente no Brasil um período de anomia relativamente a várias questões relevantes, situação fática que faz com que outras Instituições, que não o Legislativo, se vejam na contingência de enfrentar temas que carecem de normatização legal.
Assim é que o CFM editou a Resolução 1.358/92, numa atitude de vanguarda e de preocupação ética com os procedimentos próprios da medicina reprodutiva. Recentemente, através da Resolução 1.957/10, o CFM, revogando a dita Resolução 1.358/92, segue trilhando o caminho da imposição de balizas às técnicas de reprodução assistida, mas com inovações que — para além de serem condizentes com os avanços científicos —, também estão mais afinadas com os princípios traçados em nossa Constituição Federal, em especial os da dignidade humana e da igualdade.
Percebemos isso claramente quando verificamos que, sob a regulamentação da Resolução 1.358/92, apenas as mulheres capazes podiam se utilizar das técnicas de RA, ao passo que, conforme a Resolução 1.957/10, todas as pessoas capazes têm acesso à mencionada técnica, sem qualquer restrição de orientação sexual, estado civil, ou outras. Dispondo dessa forma, o CFM orientou-se de acordo com o princípio constitucional da isonomia, que dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
A medicina reprodutiva é a expressão de um avanço científico de vulto, nada justificando que determinados cidadãos possam dele se utilizar, enquanto outros não o possam, o que seria uma crassa manifestação de intolerância e discriminação.
2) Ficou superada a exigência do consentimento informado do cônjuge ou companheiro(a), se não contribuiente genético (como na reprodução assistida heteróloga)?
Sim. A exigência a que aludia a Resolução 1.358/92, no sentido de que, uma vez casada ou em regime de união estável, só poderia a mulher utilizar-se das técnicas de reprodução assistida se autorizada pelo marido ou companheiro, em verdade violava frontalmente o princípio da dignidade da mulher, porquanto tolhia o exercício livre de sua autonomia privada, o que afrontava os fundamentos mais basilares do Estado Democrático de Direito.
A responsabilidade pela não autorização do marido, no caso em questão, tem seu campo de discussão nos lindes do direito de família, já que o Código Civil, em seu artigo 1.597, inciso V, deixa claro que a presunção de paternidade dos filhos havidos na constância do casamento, em caso de inseminação artificial heteróloga, depende da autorização do marido. Assim, sem tal consentimento, não há paternidade presumida e o fato, em tese, pode dar causa inclusive ao divórcio do casal, se as questões subjetivas envolvidas forem instransponíveis, mas, jamais, a mulher capaz pode ser impedida de se submeter às técnicas de RA, seja ela casada ou não.
3) O que justificou a inclusão acerca da eticidade da prática de reprodução assistida post mortem?
Qual o documento considerado hábil para constar a autorização prévia para tanto necessária (considerando que até a presente data não há legislação que precise o instrumento)? O testamento serviria?
A ética é a ciência que gravita em torno da conduta do homem. Partindo dessa premissa, podemos concluir que, especificamente quanto ao tema da reprodução assistida, o que se coloca em questão é o limite entre “o que é tecnicamente possível fazer” e “o que se deve fazer”. A reprodução assistida post mortem é uma chance de continuidade da vida, da descendência, significando, assim, oportunidade de felicidade e realização para pessoas que por motivos vários, em determinado momento de suas vidas, não estão em condições de procriação como, por exemplo, quando um dos cônjuges está doente, submetendo-se a tratamento com drogas que podem prejudicar os gametas.
A criopreservação dos gametas, nesses casos, exsurge como um verdadeiro milagre para esses casais. Desse modo, trata-se de um avanço científico que deve ser efetivado e colocado à disposição das pessoas que dele necessitem.
É, sem dúvida, um proceder ético e, portanto, foi adequada sua previsão na Resolução 1.957/10. Se assim não fosse, estaríamos subtraindo a oportunidade de felicidade de muitos casais que escolheram, espontaneamente, perpetuar a família através dos filhos, para além da morte.
Demais de tudo isso, cumpre registrar que a conveniência ou não de uma gestação post mortem, em seus aspectos familiares e sociais, é avaliação que cumpre apenas ao casal fazer no exercício de suas liberdades e autonomias, não cabendo ao estado intervir nessas questões, conforme preceitua o artigo 1.513, do Código Civil.
Por fim, vale ressaltar que, mais do que ética, a medida é legal, sendo que, bem antes da edição da Resolução 1.957/10, o Conselho da Justiça Federal, nas Jornadas de Direito Civil, aprovou o seguinte enunciado, tratando da filiação por fecundação artificial homóloga, nos casos de falecimento do marido:
Enunciado 106 – Art. 1.597, inc. III: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.
Essa autorização escrita do marido a que alude a Resolução 1.957/10 e também o Enunciado 106 do CJF, não carece de maiores formalidades, sendo necessário apenas que nenhuma dúvida exista sobre a autenticidade da manifestação da vontade do marido, podendo, assim, ser manifestada em testamento, desde que no momento da criopreservação, conforme dispõe a dita Resolução.
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CEBID - Centro de Estudos em Biodireito
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